sexta-feira, 29 de março de 2019

fora de prazo



A infelicidade engorda mais 
 do que vinte tabletes 
 de chocolate Regina. 
 Mesmo partida aos quadrados 
 e embrulhada em prata
 para disfarçar, 
 tem mais calorias. É um veneno, 
 a infelicidade. Matou uns quantos
 pelo caminho e mesmo assim
 tem prosseguido ao longo dos séculos
 engolindo sulcos de tempo e 
 lamelas de comprimidos.
 Infelicidade, por seres minha, 
 tenho-te algum respeito.
 Gostava de mandar-te para. Mas
 é tão longe que, temo, 
 sentir-me-ia sem ti só 
 e, pior, infeliz. 

Sigo.
 De braço dado contigo. 
 Primeiro, pelo adro fora.
 Depois, pelo jardim fora. 
 Qual paraíso. 
 Não, isso não chega: sigo contigo
 pelo universo; cubro
 chineses, paquistaneses, neozelandeses 
 com o teu manto diáfano
 de choro.
 E é sempre contigo, 
 minha puta, que partilho
 a bandeja das recordações;
 é sempre contigo, minha puta fiel,
 que digo, num sorriso minúsculo e muito tímido:
 hoje o lanche é chocolates. 
 Come chocolates, pequena.

Porque, sabes?, 
 querer ser feliz não é pecado. Mas
 infelizmente já passou o prazo.







 Inês Fonseca Santos

quarta-feira, 27 de março de 2019

desassossego



Tu vens todos os dias à noitinha 
e despes-te com tanta lentidão 
com tanta lentidão que se adivinha
 a forma do teu próprio coração

 E quando vais é já noite fechada 
não sei se vou ficar se vou sair
 não posso ter a alma sossegada
 sem saber se amanhã tornas a vir 






 David Mourão-Ferreira

domingo, 24 de março de 2019

um resto



E depois – quando eu partir 
restará alguma coisa 
de mim
 no meu mundo – 
restará um fino rasto de silêncio 
no meio das vozes – 
um ténue sopro de branco 
no coração do azul –






 Antonia Pozzi
( trad. de Inês Dias)

terça-feira, 19 de março de 2019

sexta-feira, 15 de março de 2019

vendaval




É apenas um pequeno buraco no meu peito
 mas sopra nele um vento terrível. 







 Henri Michaux

terça-feira, 12 de março de 2019

insensata



Seria agradável estar bêbeda:
 infiel à minha língua e mãos,
 desistindo de limites
 pelo heróico gin.
 Bêbeda de morte
 é a expressão em que estou a pensar,
 insensata, 
 nem fria nem quente, 
 Sem cabeça ou pé.
 Estar bêbeda é ser íntima de um louco 
vou tenta-lo brevemente 







 Anne Sexton

domingo, 10 de março de 2019

mas de nada serve inventar palavras



Eu gostava de poder dizer
 que entrei no teu corpo como um pássaro 
espreitando através de invisíveis ruínas
 e que o som da tua voz bastava
 para me salvar








 Alice Vieira
(Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 7 de março de 2019

o pior



Um desgosto de amor 
atirou-me para um 
curso de dactilografia 
consolo-me
 a escrever automaticamente 
o pior são os tempos livres 






 Adília Lopes

segunda-feira, 4 de março de 2019

Postscriptum



apercebo o lume dum coração antigo e simples
 atravesso a cor luminosa dos sonhos sem me deter
 aqui deixo o espólio daquele cuja vida
 é cintilação de lugares nítidos

 (um pouco de café, uma carta, um pedaço de vidro)

tenho a certeza de que se virasse o corpo do avesso
 ficaria tudo por recomeçar
 mas se aqui voltares
 talvez encontres estes papéis escritos
 no recanto mais esquecido da noite
talvez descubras o vazio onde o corpo desgasto esperou

 vou destruir todas as imagens onde me reconheço 
 e passar o resto da vida assobiando ao medo






 Al Berto