quinta-feira, 29 de outubro de 2020

mil e uma noites



Lentamente afasta-se. Suas mãos já não tocam 
a nossa testa nem seus gestos nos adormecem
 as pálpebras. Fazemos o sono para o esquecer
 e nenhuma noite bastará. 






 Joaquim Manuel Magalhães

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

por descuido



E então você chegou
 como quem deixa cair
 sobre um mapa
 esquecido aberto sobre a mesa
 um pouco de café uma gota de mel 
 cinzas de cigarro
 preenchendo
 por descuido um qualquer lugar até então
 deserto 







 Ana Martins Marques

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

luz



Achar
 a porta que esqueceram de fechar. 
O beco com saída. 
A porta sem chave.
 A vida 








Paulo Leminski
(Foto de Ezgi Polat)

terça-feira, 13 de outubro de 2020

conta-me histórias



 

A memória desse tempo e as fotografias desse tempo 
contam histórias diferentes







José Carlos Barros

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

por assim dizer



 

Um único fósforo foi quanto bastou. 
Mas no momento certo – teve de ser no momento certo. 

 O campo crestado, seco –
 a morte já a postos 
por assim dizer 






Louise Glück 

domingo, 4 de outubro de 2020

oblívio



Jamais tive eu amor senão por ti
 Paixões o vento as trouxe e as levou
 Qual ave migratória que pousou
 Em temporário ninho onde vivi. 
 Amor, porém, é ave que povoa 
O coração da gente e nele exulta 
E ocupa de outra ave mais estulta
O coração partido e o perdoa. 
 Mas que fazer, se amor o dei ao vento
 E sinto o coração ninho vazio 
E sinto um grão calor e grande frio.
 E amo em oração no meu convento?

Eu amo quem amei e me deixou; 
Não amo quem pousou – só quem voou. 





 Daniel Jonas
 (Foto de Monia Merlo)

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

uma música



Eu conheço uma música frágil como a chuva ou as lágrimas evitadas. É uma música que ouço muitas vezes enquanto escrevo ou leio, ou que ecoa dentro de mim enquanto leio o que escrevi. Cada vez que a ouço, que percorro o teclado infindável do piano onde me refugio, esqueço-me do que escrevi e leio as lágrimas que não chorei sulcadas no meu rosto, à espera que chovesse. Que me lembre, é uma música onde tu não estás. Uma música que se calhar não existe, ou não existe assim, e não passa de uma desajeitada desculpa para finalmente poder chorar. 







 Jorge Fallorca