sexta-feira, 17 de junho de 2022

insensatez



Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
 Vou pertencer você para uma árvore. E pertenceu-me. 
Escuto o perfume dos rios. Sei que a voz das águas tem sotaque azul. 
Sei botar cílio nos silêncios. Para encontrar o azul eu uso pássaros. 
Só não desejo cair em sensatez. Não quero a boa razão das coisas. 
Quero o feitiço das palavras.






Manoel de Barros

sexta-feira, 3 de junho de 2022

tudo passa




Que tudo passa. Os desmandos arbitrários de quem nos paga, o tornozelo torcido na falha da calçada, as derrotas do Benfica, o ranho verde dos putos, o céu cerrado de tristezas e de outras tantas promessas, a subida inesperada das taxas de juro, a pontada súbita de dó pelo sem-abrigo que nos ressona o álcool aos pés, a saudade do que não nos falta, o saldo negativo no banco, o desconsolo molhado da chuva e dos projectos por cumprir. Tudo passa, menos tu: uma espécie de fantasma, uma amálgama de plasma trocista que, em vez de me destapar os lençóis e me puxar os pés ao fundo da cama, me destapa e repuxa os sentidos, picando-me o ponto com aquela assiduidade contrariada de um funcionário por conta de outrém. 






 Sofia Vieira

quinta-feira, 2 de junho de 2022

renegar



Não ser marinheiro. Não ser coisa alguma. E, ainda assim, zarpar deste lugar de fama sem proveito. Aportar às quatro estações, simultâneamente, num único cachimbo (milho de cerejeira). Comer mar, beber sal, respirar resina, cobrir a pele de lâminas de vinho. Renegar renegar. (O tempo). Ressarcir a cinta do silêncio. Derrimir a porca rouquidão. Arrancar às costas a tareia, às pernas o balastro, às mãos as mãos, à voz a recaída. Arrancar o pensamento ao fígado e o fígado ao pensamento. Calar. Sobretudo isso. Calar-me. Escutar o canto sinusoidal, elíptico, dos cactos quando levantam voo para se tornarem homens. Nesses breves segundos, em que os cactos são vermelhos e aveludados, Deus assobia, dizem, velhos ragtimes e eu gosto de ragtimes. Pelo menos tanto quanto gosto de nêsperas, de salivas que não a minha, de bicos-de-lacre, do toque da cortiça. Eu gosto de gostar. E ando esquecido disso. 






Miguel Martins