quinta-feira, 28 de novembro de 2019

terça-feira, 26 de novembro de 2019

amor depois do amor



Chegará o tempo 
em que, com alegria,
 te saudarás a ti mesmo ao tocares
à tua porta, ao olhares-te no espelho, 
e cada um dará ao outro as boas-vindas com um sorriso, 
 e dirás, senta-te aqui e come. 
Amarás de novo o estranho que há em ti. 
Oferece-lhe vinho. E pão. Devolve o teu coração, 
ao estranho que te amou
 toda a tua vida, aquele a quem trocaste 
por outro, aquele para quem não tens segredos. 
Varre as cartas de amor da estante, 
 as fotografias, os bilhetes desesperados, 
Arranca a pele à tua imagem no espelho.
 Senta-te. Festeja contigo a tua vida. 






 Derek Walcott

domingo, 24 de novembro de 2019

sem mentir



 ainda não sei se o amor esteve aqui de luz acesa 
e se caminhou nu toda a noite
 pelo teto do quarto mas 
eu tirei a roupa toda bebi água
 e não te telefonei 
qualquer coisa assim atirou-me de bruços
 para o coração e lembrei-me 
de te esquecer desde o começo
 muito longe e alto nas escadas de incêndio
 foda-se como acreditar que te amo 
sem mentir 






 Joaquim Cardoso Dias

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

fórmulas mágicas para sobreviver ao quotidiano



Quando atirei a minha roupa suja para a cave
 esqueci-me que guardava um punhado de ideias no bolso de trás das calças, 
quanto tirei a roupa da máquina de lavar encontrei-as espalhadas
 em pedaços de papel totalmente ilegíveis. 
Desde essa altura tudo me sussurra que estou louca
 porque rezo no oposto a um deus que já não existe, 
e porque me aparecem estigmas nas mãos
 e me vêm ver desconhecidos que comigo passam as noites. 
As minhas palavras afogaram-se em saponária 
e não consigo encontrar-lhes o rasto na minha cabeça. 
As letras que surgiram dos meus dedos que anotei nos papéis que guardei no meu bolso
 eram a minha direcção, o meu nome, o título de um livro, 
as línguas que falo, as coisas que não digo.
 Eram fórmulas mágicas para sobreviver ao quotidiano, 
como abrir o correio e dar os bons dias,como não abrir a porta ao homem sedutor 
que nunca se reflecte nos espelhos. 
Tudo o que anotava eram pequenas pistas que seguia para juntar as partes do meu corpo, 
para não me enganar e para saber quem sou sem ter que pensar duas vezes. 







 Ana Merino

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Quantas promessas eu faria se as cumprisse todas juntas



Cá dentro inquietação, inquietação 
É só inquietação, inquietação 

Porquê, não sei





José Mário Branco

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

de ti



Havia meses que não escrevia
 nem um único poema. 
 Vivia com humildade, lendo os jornais,
 pensando no enigma do poder 
 e nas causas da obediência.
 Olhava para os pores-do-sol
 (escarlates, cheios de inquietação),
 escutava o emudecimento das vozes dos pássaros 
 e o silêncio da noite. 
 Via os girassóis a pendurarem
 as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
 passeasse por entre os jardins. 
 No parapeito recolhia-se
 a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
 se escondiam nas curvaturas dos muros. 
 Dava longos passeios,
 sedento duma coisa só:
 dum relâmpago, 
 duma mudança,
 de ti. 






 Adam Zagajewski

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

perdão




Peço-te humildemente, 
o mais humildemente possível, 
perdão
não por te deixar, 
mas por ter ficado tanto tempo. 






 Marguerite Yourcenar
(Foto de Monia Merlo)

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Sophia



E eu não habito os jardins do teu silêncio 
Porque tu és de todos os ausentes o ausente 






 Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 5 de novembro de 2019

quem nos reclama?



De pouco servimos. Caímos e decaímos, pintamos de branco os muros do sono,
 regressamos sempre à mesma hora às agruras de uma casa,
 solitários como as águias e os fantasmas no interior de si mesmos. 
Quem nos quer? Quem nos reclama? 
Talvez seja melhor assim. Andamos de aqui para ali, 
subimos e descemos, arrancamos as urtigas, 
assustamos as rãs, deixamos que o vento leve
 os gemidos do nosso outono. 






 José Agostinho Baptista