sexta-feira, 25 de setembro de 2020

pétalas negras ardem nos teus olhos



É um tempo de presságios e venenos 
Recolhe-te e escuta 
O sangue sobre as orquídeas. 






 Luís Falcão

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

o mundo era só ali



O pequeno golpe que me abriste feito de amor e abandono 
entre a veia cava e a beira da estrada onde por vezes me sento sozinho 
 olhos fechados no meio de uma sala cheia de gente
 é o caminho por onde parte e não regressa o caçador esquimó
 que vi num filme ainda miúdo quando as luzes se apagavam mesmo 
 e então o mundo era só ali. 







 Miguel Martins

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

é preciso nunca fazer as coisas pela metade



Uma cidade escuta desolada 
O canto de um pássaro ferido 
É o único pássaro da cidade
 E foi o único gato da cidade 
Que o devorou pela metade 
E o pássaro deixa de cantar
 E o gato deixa de ronronar
 E de lamber o focinho
 E a cidade prepara para o pássaro 
Funerais maravilhosos 
E o gato que foi convidado 
Segue o caixãozinho de palha
 Em que deitado está o pássaro morto
 Levado por uma menina 
Que não pára de chorar 
Se soubesse que você ia sofrer tanto 
Diz-lhe o gato 
Teria-o comido todinho 
E depois teria te dito
 Que o tinha visto voar
 Voar até o fim do mundo
 Lá onde o longe é tão longe 
Que de lá não se volta mais 
Você teria sofrido menos
 Só tristeza e saudades

 É preciso nunca fazer as coisas pela metade. 







 Jacques Prévert
 (Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

gavetas



Vasculhei as tuas coisas como um detective. 
 Tentei descobrir porque deixaste de gostar de mim. 
 Não conseguia reduzir a um só motivo 

Uma das minhas gavetas está cheia de tralha tua. 
 Eu queria arranjar um apartamento maior, 
 e ter um quarto só para ti. 
 Iria tornar-se numa espécie de museu. 
 A tua ausência iria estar em exposição. 

A tua fotografia está no armário. 
 Está ao lado dos livros que li, 
 e que não tenciono reler. 





 Hal Sirowitz
 (Foto de Laura Makabresku)

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

entre o nada e o nada



Olhava este momento que ia desaparecer, com saudade – porque nunca mais se repetiria no mundo. Nunca mais outro segundo igual nem na luz, nem na vibração, nem na ternura O momento em que me sorriste, baloiçado entre o nada e o nada, nunca mais se voltaria a repetir, idêntico e completo, em todos os séculos a vir! Estava ali a morte está aqui a vida. Agora pergunto a mim mesmo se te deixo morrer; e a pergunta obsidia-me e exige resposta imediata. Sei tudo, tudo o que me podes dizer – já eu o disse a mim próprio. Até hoje falava a alguma coisa que me ouvia, hoje só interrogo a mudez, só a mim próprio me interrogo 







 Raul Brandão

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

cartas de amor



E quando me escrevias, era tão belo o que me contavas
 que me despia para ler as tuas cartas. 
 Só nua eu te podia ler. 







 Mia Couto
 (Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 1 de setembro de 2020

um refúgio




Setembro traz consigo os dias curtos.
 Tens de encontrar um refúgio, por mais pequeno que seja. 







 Vítor Nogueira