Agora que o tempo sobrepôs em tempo
a tua ausência à tua presença,
longe da vista, longe do coração,
percebo que não sei quanto de ti ainda é teu,
quanto de ti foi construído por mim,
deve ser assim que se sente um crente
que o tempo transformou em ateu,
sei que sou a tua construção,
sei que és a minha construção,
sei-nos guardados como um noivado antigo
na correspondência trocada que não trocámos,
sei os teus olhos verdes de cor,
sei os meus olhos verdes de cor,
tal pai tal filha, dizia a mãe da teimosia,
a nossa botânica particular,
sei de cor a minha ignorância
e sei o que não consigo dizer,
por isso me sinto tão perdida,
por isso leio muita poesia,
a cada um a sua geografia, a sua genealogia,
por isso, como o Simic, queria escrever
um poema que até um cão pudesse entender.
Raquel Serejo Martins
(Foto de Monia Merlo)