quinta-feira, 31 de outubro de 2019

não sei



Eu não esqueço.
 Por que eu não esqueço? 
Não sei por onde começar a esquecer. 






 Alejandra Pizarnik
(Foto de Anna O)

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Viver todos os dias cansa



 Bem que podíamos morrer
 um bocadinho de vez em quando, num sitio sem portas
 nem janelas, sem telefones, campainhas, carros, motos,
 autocarros num sitio sem nada e principalmente sem ninguém. 
Enrolarmo-nos no mais fundo de nós próprios, como se voltássemos ao ventre materno, 
e deixarmo-nos morrer assim um bocadinho. 
Sim, porque viver cansa e não é pouco 





Pedro Paixão
 (Foto de Cristina Coral)

sábado, 26 de outubro de 2019

morro-me de ausência



Morre-se de tanta coisa 
 Quanto a mim morro-me de ausência
 morro-me com todo este céu a cair-me por entre os dedos;  
pedacinhos de memória pendurados
 morro-me também 
 da melancolia
 quando tu, sem eu saber porquê,
 nem te aproximas nem acenas
 ah sim, também se morre de silêncio 






 Victor Oliveira Mateus

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

flores



Comprou um ramo de flores, 
desce a avenida 
 de ramo de flores numa mão, 
 guarda-chuva aberto na outra mão, 
 uma inevitável tristeza no coração,
 quase altiva e quase segura, 
lembra um cavaleiro sem cavalo
 a atravessar um campo de batalha, 
 começou hoje a sua luta contra o Inverno, 
 por isso comprou flores. 






 Raquel Serejo Martins
(Foto de Anna O)

terça-feira, 22 de outubro de 2019

lembras-te?



Lembras-te dos nossos sonhos? Então
precisávamos (lembras-te?) de uma grande razão. 
Agora uma pequena razão chegaria, 
um ponto fixo, uma esperança, uma medida. 






 Manuel António Pina

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

post it



Enquanto se dá um nome ao sofrimento e um rosto àquilo que nos fere, 
estamos ao abrigo da loucura.






Agustina Bessa-Luís
 (Foto de Saul Leiter)

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

podia vir o que viesse



Hoje podia vir o que viesse: 
o que fosse poesia 
ou a noite selvagem na 
garganta

podia vir 





Ana Luísa Amaral





sábado, 12 de outubro de 2019

memória



Se o outono 
fosse o cheiro de frutos
 na memória 

 e os frutos
 a calma dos sentidos

 o nosso rosto com luz
 ou neon
 pelos cabelos 
seria um retrato de mágoa 
olhando o chão 







 António Reis

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

murmúrio





 o meu medo era mirrares 
em melancolia sem fim, 
perto de mim, 
longe do princípio do mundo
 onde nasceste. 
murmurei-te 
a mesma melodia, 
dia após dia,
 música mineral, rocha metamórfica,
 melindrosa manifestação nasal
 bilabial 
e muito mais.
 Pierre Magnol saberia cuidar de ti, 
magnólia
 monofilética, 
estética harmonia em pétalas paradoxais, 
hóstias pagãs, 
és tu a 
flor de mim.

(com três das minhas palavras a flor fez poesia
                                   obrigada)




segunda-feira, 7 de outubro de 2019

o coração desarrumado



De nada me valeram, os que vieram depois do que entre nós não houve. Por tua causa perdi o olfacto e o paladar e todos os homens me sabem ao mesmo. Procurei-os nos antípodas de ti e cuidei de escolher formatos e feitios que não os teus, numa fuga em frente, como se. Nuns casos, diverti-me; noutros, arrependi-me, mas sempre a porcaria do coração aos solavancos, a malbaratar-me em entusiasmos pré-fabricados, que cansaço. Quiseram-me muito e tratam-me bem, mas vai dar ao mesmo porque não tenho escolha: passados dias, e a minha carne rejeita-os como se o transplante falhado de um órgão estranho. Quanto ao resto, amo-te sem o menor indício de desespero; apenas deixo que a tristeza me faça cócegas numa ou outra lua nova, e é se me distraio. Não tenho qualquer esperança de que tu um dia qualquer coisa, pois foges de mim como o diabo da cruz e é assim que deve ser. Quem sabe só me interessas enquanto obstáculo intransponível contra o qual gostaria de chocar, esparvoada, algures ainda neste tempo de vida. És um empata, o meu empecilho de estimação, um chove não molha que me embaraça e me troca as voltas, mas eu já não saberia viver de outra maneira. Tenho cá dentro a persistência devota de uma mulher de província, enganada pela lábia de um caixeiro-viajante, que gasta as horas num desvelo obsessivo para com o filho ranhoso que é a cara do pai








sexta-feira, 4 de outubro de 2019

não estás


Todos os meses
 te escondes 
na tua própria casa 
e o cobrador sabe sempre
 quando o silêncio tem pó 
e é perfeito. 





 António Reis

terça-feira, 1 de outubro de 2019