terça-feira, 29 de março de 2022

cinema



 

Era no cinema, onde as portas
 se abrem e fecham continuamente.
 Àquele rumor ela pensou
 que ele voltasse
 mas não voltou. 







Sandro Penna
(Foto de Cristina Coral)

quinta-feira, 24 de março de 2022

tempestades na boca



chove muito, muito, dir-se-ia que estão a lavar o mundo. o meu vizinho do lado vê a chuva e pensa em escrever uma carta de amor uma carta à mulher com quem vive e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele e se parece com a sua sombra o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher entra em casa pela janela e não pela porta por uma porta entra-se em muitos sítios no trabalho, no quartel, na prisão, em todos os edifícios do mundo mas não no mundo nem numa mulher nem na alma quer dizer nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim como hoje que chove muito e me custa escrever a palavra amor porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa e só a alma sabe onde as duas se encontram e quando e como mas que pode a alma explicar? por isso o meu vizinho tem tempestades na boca palavras que naufragam palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que ele amou e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá como o silêncio que existe entre duas rosas ou como eu que escrevo palavras para regressar ao meu vizinho que vê a chuva e à chuva ao meu coração desterrado






Juan Gelman

segunda-feira, 21 de março de 2022

poesia



 

As palavras despedem-se dos dias
 em que falar é o melhor serviço
 Caem mortas e vivas da linguagem 
vitimada 
Mas quando regressarem
 a sua fúria grande prenderá 
nos humanos céus húmidos a arte
 esquecida e excessiva da poesia. 






 Gastão Cruz

terça-feira, 15 de março de 2022

espaços vazios



 

Tenho arrumado os livros. 
Tiro de uma prateleira sem ordem
 e coloco em outra com ordem. Ficam espaços vazios.
 Hora em hora. 
Não tenho te dito nada. 
Ligo para os outros.
 O que eu poderia dizer é perigoso: certeza (assim como eu disse: daqui dez anos estarei de volta) de que nos reencontramos, cedo ou tarde. 
Mas não sei mais quando
 Cedo ou tarde reencontro – o ponto
 de partida. 







 Ana Cristina Cesar
 (Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 10 de março de 2022

domingo, 6 de março de 2022

de um poema




Não tenho medo de sofás vazios
 ficam na sala da minha lembrança
 como adereços de uma vida acabada 
 Desde que te esqueci revive a esperança 

 Agora tenho outro à porta em certos dias
 Deixo-o entrar levo-o para a minha cama
 e passo-lhe a mão pelos cabelos 
 como tu me fazias 

 Gosto de ti como de um quadro de um poema
 que o tempo torna nossos pessoais 
 Fazes parte de mim e tudo o mais
 já está esquecido. Longe e acabado como tu. 






 Ulla Hahn
 (Foto de Nishe)