sábado, 27 de setembro de 2014

Ficas longe dos nomes que tecem o silêncio das coisas








(Foto de Laura Makabresku)


Não, 
as palavras
 não fazem amor
 fazem ausência 
Se digo água, beberei? 
Se digo pão, comerei? 





Alejandra Pizarnik
 (Foto de Laura Makabresku)

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Às vezes



No espelho
 o olhar desaparece
 às vezes desalojado 
 no meu próprio corpo
 às vezes
 angustiado
 pela angústia 
 que rola
 para lá e para cá como destroços 
 na rebentação
 raspo com um dedo 
 o vidro
 e oiço o mundo gritar.





 Pia Tafdrup
(Foto de Katia Chausheva)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

E fora de obséquios



Pus o céu em teu corpo, fizeste-lo vento 
Pus o vento em teus olhos, fizeste-lo sonho 
Pus sonho em teu silêncio 
E fizeste-lo noite
 E esta noite não há céu, vento, nem sonho 
Que façam de meu coração 
Uma luz de que retorne o amor





 Federico Díaz-Granados
 (Trad. A.M.)
(Foto de Mariam Sitchinava)

domingo, 21 de setembro de 2014




e vou-me embora com ar de borboleta triste, depois da chuva, e volto mais tarde de peito cheio de rosas




Manuel Cintra
(Foto de Katia Chausheva)

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Diz-me



Falas de sol e lá fora chove.
A quem falas quando 
iluminas de uma luz tão quente
 cada palavra? A quem dás
 a beber a boca, a respirar
 o aroma do feno por entre a chuva? 





 Eugénio de Andrade

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Talvez



Talvez digas um dia o que me queres,  
Talvez não queiras afinal dizê-lo, 
Talvez passes a mão no meu cabelo, 
Talvez eu pense em ti talvez me esperes. 
Talvez, sendo isto assim, fosse melhor 
Falhar-se o nosso encontro por um triz 
Talvez não me afagasses como eu quis, 
Talvez não nos soubéssemos de cor. 





Vasco Graça Moura

sábado, 13 de setembro de 2014

Onde é sempre noite



Nunca conheci os meus inquilinos da vida
Não sei quando saem, nem quando entram, 
em que estação ignota descansam de suas misérias. 
As mulheres têm saído deste corpo a bater com as portas 
queixando-se da minha tristeza, 
mas já se têm queixado da humidade, 
de muito frio, até de mofo na dispensa. 
 Vão-se sempre sem pagar os inquilinos da minha vida 
e o pátio fica novamente vazio. 
Meu coração deixa de ser albergue de famintos
 para acolher os pássaros todos que arribam no verão 
e esperam que voltes pelas tuas coisas
 a este hotel de passagem em que é sempre noite. 





 Federico Díaz-Granados

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Essa mulher dentro de mim



Há uma mulher dentro de mim que não é gramática decomposta nem acento circunflexo. Não é metáfora exagerada, nem vegetação espessa no limite da vírgula. Não é anáfora suada, nem rigor maiúsculo no recuo do parágrafo. Há uma mulher dentro de mim que não é periferia nem superfície transversal. Essa mulher que não outra mulher, esmaga-me as telhas no tecto da boca. Tenho-a calada e encavalitada debaixo das palavras mais fáceis de carcomer. Tenho-a cansada e regrada por cima das feridas menos custosas de sarar. Mas essa mulher que dentro de mim não me permite outra habitação que não esta, não me serena a vontade áspera de romper a madeira dos braços, de moer do úmero a lasca e da acha articular outro galho maior. Há uma mulher dentro de mim que não me reconhece como sua. Há uma mulher dentro de mim que míngua encolhida no cavo do medo. Há uma mulher dentro de mim que ama uma mulher insuficiente de si mesma. 





 Alice Turvo

sábado, 6 de setembro de 2014

Inventário



uma pilha de poemas impressos
 outra dos que foram perdidos
 e mais outra dos que ficaram por escrever
 uma prateleira com sonhos queimados
 quarenta e cinco amores frustrados 
um relógio sem ponteiros
 um gato imaginário que mia em silêncio
 um pássaro empalhado com a asa esquerda partida 
uma mala de couro pronta para a viagem sem volta 





 Júlio Saraiva
(Foto de Anton Corbijn)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Instante



Que faria eu sem este mundo sem rosto sem perguntas 
Onde o ser só dura um instante e onde cada instante
  Transborda para o vazio o esquecimento de ter existido 
Sem esta onda onde por fim
 Corpo e sombra juntos se anulam 
Que faria eu sem este silêncio poço fundo de murmúrios 
Curvando-se a pedir socorro pedir amor
 Sem este céu posto de pé 
Sobre o pó do seu lastro
 Que faria eu eu faria como ontem e como hoje 
Olhando para a minha janela vendo se não estou sozinho 
A errar e a mudar distante de toda a vida 
preso num espaço incontrolável 
Sem voz no meio das vozes 
Que se fecham comigo. 





 Samuel Beckett

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Estou ausente



Todos os dias digo, sussurrando,
 mantém o equilíbrio. Tudo espreita, 
tudo assusta, a vida inteira pende-te
 de um frágil fio e de uma sorte injusta.
 A tua vontade não pode muito. 
Não percas pé. Mantém o equilíbrio.





 Amalia Bautista