terça-feira, 24 de janeiro de 2017




desde o momento em que deixámos de amar-nos
 existe apenas uma grande desordem. 








Cristina Peri Rossi
(Foto de Mariam Sitchinava)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

prenda




Dizes-me que o silêncio 
está mais próximo da paz do que os poemas
 mas se como prenda
 te trouxesse o silêncio 
(pois eu conheço o silêncio) 
dir-me-ias 
Isto não é o silêncio
 isto é mais um poema 
e devolver-mo-ias






 Leonard Cohen
 (tradução de Vasco Gato)

sábado, 21 de janeiro de 2017




Entre cidade e cidade 
Depois do muro o abismo 
Vento nos ombros a mão
 Estrangeira na carne solitária 
O anjo ainda o ouço 
Mas já não tem rosto a não ser
 O teu que não conheço







 Heiner Müller

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017




Llena con tu sol el vacío de tus noches

 Llena con tu silencio el vacío de tus palabras






 Alejandra Pizarnik

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017




Foto de Sónia Silva



O azul, o azul rouco, o azul 
 sem cor, luz gémea da sede. 
 Acerca deste rigor 
 tenho uma palavra a dizer,
 uma sílaba a salvar
 desta aridez, asa
 ferida, o olhar arrastado
 pela pedra
 calcinada, húmido 
 ainda de ter pousado
 à sombra de um nome,
 o teu, 
 amor do mundo,
 amor de nada 







 Eugénio de Andrade

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017




Pensei em mentir, pensei em fingir, 
dizer: eu tenho um tipo raro de,
 estou à beira,
 embora não aparente. Não aparento? 
Providências: outra cor na pele,
 a mais pálida; outro fundo para a foto: 
 nada; os braços caídos, um mel
 pungente entre os dentes.
 Quanto à tristeza 
 que a distância de você me faz, 
está perfeita, fica como está: fria, 
espantosa, sete dedos 
 em cada mão. Tudo para que seus olhos 
vissem, para que seu corpo
 se apiedasse do meu e, quem sabe, 
 sua compaixão, por um instante, 
transmutasse em boca, a boca em pele, 
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora. 
 Daria a isso o nome de felicidade, 
e morreria. 
Eu tenho um tipo raro. 







 Eucanaã Ferraz
 (Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 17 de janeiro de 2017




Touch has a memory. O say, love, say, 
What can I do to kill it and be free? 






 John Keats

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017




O pior é acordar de manhã 
a pensar que nada pode ser igual agora
 e há que levantar e tomar banho 
e arranjar o café como sempre 
e ir trabalhar como sempre
 como se nada tivesse acontecido
 apesar de que aconteceu 
acabou chegou ao fim 
‘é melhor assim’ 
e caminhas rua fora como um sonâmbulo
 a chocar com os transeuntes 
com os ardinas
 e sentas-te num banco de pedra 
sem saber se estás vivo ou morto
 é a mesma coisa
 porque a morte também pode
 ser uma mesa num bar dois martinis secos 
e um par de lábios vermelhos
 pronunciando palavras
 que caem como guilhotinas 







 Óscar Hahn
 (Trad. A.M.)

sábado, 14 de janeiro de 2017




Chove em Santander, 
oiço-te ao telefone dizer que o trânsito 
não te deixou apanhar o avião,
tenho o quarto de hotel todo para mim,
 tenho a janela em frente do jardim, 
tenho todo o fim-de-semana para mim,
 tenho um ramo de tulipas encarnadas para mim, 
tenho os lábios pintados de carmim, 
tenho dentro do peito a impensada certeza do nosso fim, 
tenho um mini-bar com garrafinhas de gin, 
com pacotinhos de amendoim, 
tudo tão inho, tão aí flores do verde pinho, 
e chove em Santander, 
avisaram que ia chover Sábado e Domingo, 
seria um pleonasmo chorar.





 Raquel Serejo Martins

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017




Não te curves senão para amar 
 Se morreres, continuas a amar







 René Char
(Foto de Mariam Sitchinava)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

adeus




quando sobe a luz do dia, e o amor fica deserto, que dizer-vos 
 do amor______ a não ser adeus.






 Maria Gabriela Llansol

terça-feira, 10 de janeiro de 2017




podes levar os dias que trouxeste






 Pedro Sena-Lino
 (Foto Nostalgia de Tarkovsky)

domingo, 8 de janeiro de 2017





Há momentos em que a maior sabedoria é parecer não saber nada







Sun Tzu

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017




Neste mundo 
 Por cima do inferno 
Contemplo as flores 






 Kobayashi Issa

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017




De noite atravessando o lago a nado o momento
 Que te põe em causa Já não há outro 
Finalmente a verdade 
Que tu mais não és que uma citação 
De um livro que não escreveste 
Podes escrever uma vida para negar isto na tua 
Fita de máquina descorada 
O texto lê-se à transparência 






 Heiner Müller

terça-feira, 3 de janeiro de 2017




A minha boca
 sabe à tua boca 

 A minha boca 
 perdeu a memória 






 Mário Cesariny

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

eu não sei onde




Coisas que não passam. 
 Há quem diga que dentro da cabeça, eu não sei onde. 
Coisas que de vez em quando voltam e por isso, só por isso, 
se sabe que não passam. Coisas que nos agarram por
 detrás da nuca, frente a um espelho, sem qualquer propósito, 
e só nos deixam sem querermos. Pequenos rogos, doces chamamentos, 
partidas muitas, asperezas, ciúmes, vícios, abraços ternos,
 despedidas, raivas, tédios, pequenos espantos, sobressaltos. 
Coisas que não passam, há quem diga que dentro da cabeça. 
Eu não sei onde 






 Pedro Paixão