Faço a cama todos os dias, tento preservar a ordem do meu mundo.
Lavo pratos, copos, talheres, quero dizer, enfio-os na máquina.
Mantenho limpos os vidros das janelas.
Lavo o corpo, os dentes, a roupa, do corpo e da cama, quero dizer, enfio-a na máquina, há máquinas para tudo.
Não moro sozinha, moro com dois gatos e vaso nenhum com planta
Compro os víveres no supermercado.
Chego a sexta-feira com uma garrafa de vodka e duas maçãs mirradas no frigorífico.
Já plantei couves, alfaces, árvores de fruto.
Já escrevi cartas ridículas, tenho esta estranha mania de ser sincera.
Tenho vergonha de erros ortográficos.
Valorizo a etimologia.
Tento perceber o oposto de todas as coisas, mesmo da bondade.
Não tenho a virtude da paciência, nem sei se é virtude.
Sou feliz só porque não trabalho num talho.
Não como outros animais.
Evito ter contas por pagar.
Ando a pé mesmo quando chove.
Preciso urgentemente de comprar um guarda-chuva novo.
Fumo, o que não é qualidade.
Não prescindo da mentira, o que nem sempre é defeito.
Vou ao teatro e respiro.
Leio os meus poetas e sufoco.
Evito a televisão.
Não sei o que fazer com a minha solidão.
Sei fazer chá, o que, convenhamos, não é difícil, e compota de abóbora.
Não me lembro da última vez que ri até às lágrimas.
Nunca fiz uma revolução.
Agora sei que fui feliz em Florença.
Lembro-me de várias as vezes que fiquei de coração partido e como diz a canção: o amor só é bom se doer.
Às vezes tenho vontade de abraçar desconhecidos.
Garimpo a beleza das coisas, os pormenores insignificantes da vida.
Comovo-me com a ferrugem na ferragem da varanda.
Não tenho varanda e penso na distância entre o dia de hoje e a minha morte.
E sei que a vida apesar de breve cansa.
Raquel Serejo Martins
(Foto de Monia Melro)