sábado, 30 de junho de 2018

luz



E assim te foste, luz de vaga-lume,
 feita de segredo e brevidade.
 Impossível definir aquele perfume 
que o teu surgir me trouxe nessa tarde. 








 Alberto de Lacerda

quinta-feira, 28 de junho de 2018

a memória e o desejo



I will remember your small room, the feel of you, the light in the window, your records, your books, 
our morning coffee, our noons, our nights, our bodies spilled together, sleeping, 
the tiny flowing currents, immediate and forever. Your leg, my leg, your arm, my arm, your smile 
and the warmth of you who made me laugh again. 








 Charles Bukowski
 (Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 26 de junho de 2018

e eu fico a arrumar as minhas mãos



Sónia Silva 


Ofereces-me uma pedra negra mágica que trazes do norte
 e as minhas palavras e as minhas mãos detêm-se sem saber
 por quanto tempo irão ficar na soleira da noite e do dia 
 tacteamos os corpos em busca de memórias adormecidas
 ocultas por sucessivas camadas de palavras por dizer
 deslizamos para o chão sem resposta e o fumo sobe 
 equilibra-se em nuvem sobre as nossas cabeças e evola-se
 em direcção a uma lua vermelha momentaneamente apagada
 ao som de bob marley fazes as malas e partes e eu fico
 a arrumar as minhas mãos e as palavras atrapalhadas
 no fumo desorientado pela ausência de um ponto cardeal
 junto cuidadosamente os teus cabelos rubros perdidos 
 entranço uma bola de fogo e guardo-a na memória 
 acendo uma dúzia de paus de incenso e imagino uma igreja
 de adoradores do silêncio que escorre por entre as preces
 a tua pedra negra regressa à minha mão fechada
 e ilumina como um sol a minha noite em claro 

Virás por uma palavra? 






 Carlos Alberto Machado

domingo, 24 de junho de 2018

não devia




Quem tem assim o verão
 dentro de casa
 não devia queixar-se de estar só








 Eugénio de Andrade

terça-feira, 19 de junho de 2018

não vais voltar




Não vais voltar a perguntar-me
 se já estão em flor os jacarandás cinemateca
 que filme vi Terça-feira, 
Terça-feira é dia de cinema por tua causa,
 como estão as minhas contas, a minha hipoteca,
se já comi cerejas, e quem ando a comer, 
perguntavas assim, atrevido,
 e não atrevido, à vontade, 
porque querias saber se cuspi o caroço. 
Não vais voltar a perguntar-me 
do primeiro mergulho de Verão, 
dos poetas que ando a ler, 
das pessoas que matei no local onde trabalho,
 do humor e do amor dos meus gatos, 
quem foi a última pessoa que abracei, 
sabias da extrema importância dos abraços. 
Não vais voltar.







 Raquel Serejo Martins

domingo, 17 de junho de 2018

terça-feira, 12 de junho de 2018

acender a chama recomeçar a luz




Sabes como me fizeste noite? 
e como me obrigas a reaprender devagar
 o comprimento dos dias ? 






Ana Paula Inácio

segunda-feira, 11 de junho de 2018

ao teu amor não lhe perdoes nada




Solitário e furtivo, o homem do ramo
 anda por locais nocturnos à procura de casais. 
Encontrei-o nas ruas ao pé da Rambla
com umas rosas sem cheiro a rosas
 numa noite que não tem cheiro a noite. 
E perdi-me pelas traseiras da vida. 
Uma mulher na sombra que não és tu 
roubou-te os olhos e chora. A cidade
 é uma exacta e monstruosa cópia.
 Como se o Cúpido já estivesse velho,
 passa cuspindo o vendedor de rosas.
 Enquanto se afasta penso: ao teu amor
 não lhe perdoes nada. Nem o seu final. 






Joan Margarit
 (Foto de Anna O)

sábado, 9 de junho de 2018

oxímoros para uma ausência




Como é possível que o silêncio pare
 e o som não regresse ?







 Gastão Cruz
(Foto de Katia Chausheva)

sexta-feira, 8 de junho de 2018

resgate




de todas as vezes
 decapitada
 tornei a colocá-la
 sobre os ombros
 à cabeça
 que hoje
 deposito ao contrário

 para que não te veja 
quando olhar para trás






 Ana Paula Inácio

quarta-feira, 6 de junho de 2018

a ver se deixa de doer




Demorou dois meses a livrar-se dos livros. 
Dezassete caixotes de cartão, 
um em cada manhã, a caminho do trabalho. 
Abandonava-os no estacionamento. 
Primeiro os livros, depois as estantes,
 prateleira a prateleira, com a decepção de quem 
renuncia a uma fé. 
Deixara de ler. Agora, bastavam-lhe
 alguns minutos no corredor do supermercado. 
Folheava ao acaso, reprimindo a repulsa.
 Tinha deixado de escrever. 
Recusava-se a acrescentar uma palavra que fosse
 à pilha de papel impresso
 que lhe esmagava a carne. Para papel, 
bastava-lhe o do escritório, o peso e a espessura
 do arquivo morto da burocracia.
 Relatório, inventários, estatísticas. 
Com o tempo talvez dos números
 emergisse uma imagem de mundo. 
Alguma coisa em que acreditar. 
Mais tarde, quando lhe ocorria um título,
 dirigia-se à estante, uma prateleira no armário
 da televisão, 
 e não encontrava lá nada.
Voltava para o quarto, mas continuava a senti-los, 
feridos como é possível 
sentir a dor de um membro há muito amputado. 





 Madalena de Castro Campos