Encha o copo. Assim, até cima. Obrigado. Sabe que tive infância? Claro, não sou um sentimental. Pensa que disponho assim de desafogos morais, luxos do espírito, remansos culturais burgueses, para entregar-me a libertinagens da emoção? Tive infância, só isso. Ou seja: falta de jeito, indecisão, uma grande ignorância. Olhava para as coisas: eram fundas, enigmáticas, desorientadoras. Tudo estava cheio, porque o meu coração ávido tudo recebia: era um espaço palpitantemente vazio. Agora não, agora estou cheio de pessoas, lugares, acontecimentos, ideias, decisões. E tudo me parece deserto. Não, voltar à infância, isso nunca. Sofre-se. O mundo é grande. E há tanta curiosidade e paixão, tanta ignorância. Doloroso. Espera-se, está-se nas coisas, cegamente imiscuído nelas. Que angustiosa, esta voracidade, esta fusão analfabeta com a instável matéria do mundo! Agora sou inteligente. Existo. Existe o universo. Duas realidades distintas, inimigas, inúteis. Sim, deite mais brandy. Sou bêbado, claro. Que esperava? Que fosse um apóstolo, um assassino, um político, um anjo? Não, sou apenas um bêbado.
Herberto Helder
(Os Passos em Volta)