sexta-feira, 26 de maio de 2023

fogo posto



 

Se eu não tivesse conhecido 
o fogo, não me importava 
de deitar agora a cabeça
 na rocha fria. Mas eu conheci
 o fogo, monstro que dilata 
veias e ergue espigões no ar,
 e como conheci o fogo,
 revolta-me olhar a cinza
 que se faz à minha volta. 
Às vezes a cinza é morna, chega
 até a lembrar que foi fogo. 







 Helder Moura Pereira
(Foto de Ezgi Polat)

segunda-feira, 22 de maio de 2023

a fingir que não




Desistir do rosto, dos propósitos, das
 palavras. Há sílabas assim.
 Com a vergonha do afecto
 emprestada ao desalinho das mesas. 
Por ali, encenando a imobilidade, 
a rudeza de haver dor. 
 Eu sei que não virás. 
Bebo por ti, sem ti, contra ti, 
com o coração no bengaleiro 
a fingir que não, não faz diferença. 
E o pior é que até faz, 
por muito que ninguém o saiba. 





 Manuel de Freitas

terça-feira, 16 de maio de 2023

deixar de escrever




Será sensato
 descobrir o momento
 em que se deve 
deixar de escrever
 e apenas
 passar a limpo ? 






 José Alberto Oliveira

quinta-feira, 11 de maio de 2023

respirar fundo



 

Não sei a cor dos teus olhos, o som da tua voz, o toque da tua pele. 
 Não conheço a tua idade, o lugar onde vives, de que te alimentas. 
 Não posso adivinhar quem amas ou amaste, se sofres de alguma irrecuperável doença, 
 quais as paisagens que preferes, que música ouves. 
Sei que espero todos os dias uma ou duas frases que me permitam
continuar a respirar neste mundo.







 Pedro Paixão

quarta-feira, 3 de maio de 2023

conto de fadas



 

Era uma vez e muitas vezes
Um homem que amava uma mulher 
Era uma vez muitas vezes 
Uma mulher que amava um homem 
Era uma vez muitas vezes 
Uma mulher e um homem 
Que não amavam aquele e aquela que os amava. 
 
Era uma vez 
 Talvez uma vez apenas 
Uma mulher e um homem que se amavam. 






 Robert Desnos