quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

a lentidão da ternura



Agora um corpo: o teu segredo ----- a minha paciência. O
 teu arco triunfal, as tuas dezenas de auroras as vezes que
 tu nasceste o teu riso cristalino. E a lentidão da ternura
 (a tua manhã a tua tarde a tua noite: as tuas diferentes luzes, 
as tuas horas inteiras e diversas sobre nós, como um tecto, 
uma amante, um calor paciente e terno) 






 Manuel Resende

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

habitua-te



Esquece o tempo em que a música era líquida 
e os ouvidos tinham sede

 não precisas de ir às putas,
 a vida encarrega-se de te foder 






 Cláudia Lucas Chéu
(Foto de Saul Leiter)

domingo, 26 de janeiro de 2020

mudo



chegas a casa com as mãos
 cheias de sacos e vincadas
 pelo esforço. o silêncio é escuro
 antes de acenderes a luz; depois
 o silêncio é o mesmo, mas ilumina
 a solidão nos objectos da casa. largas tudo
 logo à entrada. acendes a luz fria da casa
 de banho. pegas no elástico, agarras os 
 cabelos, escuros. e lavas o rosto. ele
 vai ficando na água. até que o faças 
 escorrer pelo ralo: sem nenhum som. 






 Bruno Béu
 (Foto de Dara Scully)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

tenho errado menos as quedas



Sonia Silva 


quando a última palavra se fechou alguém deve ter apertado
 o gatilho porque o corpo deixou-se ir ao chão despedaçado. 
 permaneceu intacta uma cadeira vazia e foi demasiado. 
 é verdade que tenho errado menos as quedas com que te
 persigo mas a fragilidade é apenas uma distracção do corpo. 

quem é inteiro não cai





 Pedro Jordão

sábado, 18 de janeiro de 2020

a chuva



No dia em que a essência sagrada
 das coisas se quebra
 olhas a chuva nas flores das magnólias 
e a morte 
principia sobre ti o seu trabalho





 Luís Falcão

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

da ternura




( Desvio dos teus ombros o lençol 
Que é feito de ternura amarrotada ) 






 David Mourão Ferreira

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

uma palavra em fuga




está tudo errado. A jarra de flores está errada sobre a mesa errada. Eu estou errado, num quarto errado, a ler palavras erradas. A luz que ilumina o movimento da caneta é uma luz errada. As pessoas são erros que falam de erros e eu sou um erro que as escuta. As minhas palavras são erros que respondem ao erro de outras palavras. A paisagem é um erro. Acaba-se sempre no lugar-comum do erro. Todos os desvios conduzem a esta pobreza. Poderia ser um génio se não tivesse atalhos. Porque os tenho e os percorro, sou um erro na vereda dos erros. Eles dão ao meu corpo, como a todos os outros, o estar sempre a morrer: feridas, desgostos, cheiros, dores. Quem poderá amar esta desorganização? Só um olhar breve cria o absoluto. Porém, o meu, persiste, interrompe e mata.
 "Amo-te" deveria ser uma palavra em fuga. E é somente uma cristalização. 






 Rui Nunes

sábado, 11 de janeiro de 2020

11.01



não venhas ter comigo. sobretudo hoje que tanto tenho pensado em ti. 
não venhas. 






Al Berto

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

palavras



Ensinaram-te palavras que pareciam
 prontas a derrotar quem as ouvisse 
ensinaram-te gestos para elas
 e a tal ponto te humilharam 
que te puseram de pé
limpo
 inteligente
 e aprumado 





 Alexandre O´Neil
(Foto de Nishe)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

as mesmas perguntas



não muito longe nessa cidade com os seus milhares 
de encontros ás cegas houve também outras noites
 como esta ao voltar para casa - os caminhos
 mortos do regresso as mesmas perguntas-
 e é que apesar do amor dos braços
 e das pernas abertas a solidão regressa
 com as suas dúvidas






 Pablo Garcia Casado
(traduzido por Joaquim Manuel Magalhães)

domingo, 5 de janeiro de 2020

saídos de diferentes filmes



Como um velho comerciante de carros falido 
 parecias saído de um filme de Tarantino. 
Com as minhas plumas em forma de asas 
e a maquilhagem de anjo doente 
parecia saída de um filme de Wenders caído. 
 Relativamente às plumas, em forma de asas, 
 trazia os cálculos anotados 
da distância a manter do Sol 
e a imagem de Ícaro em chamas. 
Mas naquele dia tudo correu mal.
 O que poderíamos fazer de diferentes filmes saídos? 
E choveu.
 E o nevoeiro nem um cometa deixou ver. 
A minha maquilhagem desfez-se, 
confundiu-se com os veios das plumas 
 que se colaram à minha coluna vertebral 
como um colete de forças.
 E tu velho comerciante 
já não me pudeste enganar
 e vender um artefacto voador
 por um coração ferido 






 Ana Paula Inácio

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

em parte incerta



Não sei em que rubrica me incluo: 
 endereço insuficiente, recusado, desconhecido, 
 residente em parte incerta, falecido ou outros. 





 António Pocinho