eu não habito os jardins do teu silêncio
Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus
terça-feira, 31 de outubro de 2017
sábado, 28 de outubro de 2017
sexta-feira, 27 de outubro de 2017
qual é a tua razão de ser?
À vinda do supermercado
diz-me o pequeno monstro
que às vezes me faz companhia:
«E qual é a tua razão de ser?»
Na rua, a tarde rola devagar
entre prédios murchos — e ele
acrescenta: «Não me digas
que são os versos.»
E ri-se
Rui Pires Cabral
quarta-feira, 25 de outubro de 2017
segunda-feira, 23 de outubro de 2017
como poderíamos não nos ter perdido?
Não valia a pena esperar, ninguém viria
que nos segurasse a cabeça e nos pegasse nas mãos,
estávamos sós e essa solidão éramos nós;
e era indiferente sabê-lo ou não,
ou gritar (ou acreditar), porque ninguém ouvia:
o grito era a própria indiferença.
Presente, apenas presente;
a memória, presente,
a esperança, presente.
E, no entanto, houvera um tempo
em que tínhamos sido talvez felizes,
quando não nos dizia respeito a felicidade,
e em que tínhamos estado perto
de alguma coisa maior que nós
ou do nosso exacto tamanho.
Como um animal devorando-se
por dentro a si mesmo,
consumira-se, porém,
o pouco que nos pertencera, os dias e as noites,
a certeza e o deslumbramento, a cerejeira e a
palavra “cerejeira” ainda em carne na jovem boca.
Nenhuma beleza e nenhuma verdade que nos salvasse,
nenhuma renúncia que nos prendesse
ou nos libertasse, nenhuma compaixão que
nos devolvesse o ser
ou o mesmo,
ou fosse a morada de algo inumano como um coração.
Nenhuns passos ecoavam no grande quarto interior,
nenhumas pálpebras se abriam,
como poderíamos não nos ter perdido?
Entre 10 elevado a mais infinito
e 10 elevado a menos infinito,
uma indistinta presença impalpável na indiferença azul,
sós,
sem ninguém à escuta,
nem a nossa própria voz.
Manuel António Pina
(Foto de Cristina Coral)
sexta-feira, 20 de outubro de 2017
quarta-feira, 18 de outubro de 2017
segunda-feira, 16 de outubro de 2017
casa
Quando o ser da luz for
o ser da palavra,
no seu centro arder
e subir com a chama
(ou baixar à água)
então estarei em casa.
Eugénio de Andrade
sexta-feira, 13 de outubro de 2017
quarta-feira, 11 de outubro de 2017
aquiles
( tu não fazes a barba
e eu não sei onde guardei o manual de sobrevivência
das minhas secretas fragilidades)
segunda-feira, 9 de outubro de 2017
o amor é para os parvos
Inevitável. A palavra certa é inevitável e lembro-me que foi essa a palavra que me ocorreu enquanto te abraçava e tu me abraçavas a mim. Era forçoso que assim fosse, não porque o quisesses tu ou o desejasse eu. Não porque não te amasse, ou porque não me quisesses tu. Simplesmente tinha de acabar, de uma forma ou de outra e, sendo assim, antes terminasse com um abraço. Mas tinha que acabar. São coisas que não se explicam, ou que, tendo explicação, não podem justificar-se recorrendo às escorreitas equações da lógica. Eu gosto-te, tu gostas-me; logo: separámo-nos. Tu vais e eu fico. Sofres tu e eu sofro também, porque tem mesmo que ser assim e não podia ser de outra maneira. E, se calhar, tinhas razão – o amor é mesmo para os parvos.
Manuel Jorge Marmelo
domingo, 8 de outubro de 2017
estou afinad(a)
(...)
Não ranjo. Não sangro. Não choro. Não peço. Não morro.
A não ser que me sobrevenha uma embolia ao baralho. Ao caralho.
Por isso, conservo-me em álcool. Como os miúdos fazem às cobras.
O formol é para os Deuses.
Miguel Martins
terça-feira, 3 de outubro de 2017
– socorro –
Não ter um Deus
não ter um túmulo
não ter nada de certo
mas apenas coisas vivas que nos fogem –
existir sem ontem
existir sem amanhã
e cegar no vazio
– socorro –
pelo sofrimento
que não tem fim –
Antonia Pozzi
(Foto de Anna O)
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