quinta-feira, 31 de março de 2016





Eu não sou dessas mulheres
 incapazes de amor e ternura. 
Eu sei o que é coragem e sangue,
 embora odeie o sacrifício e me repugne 
a vaidade que nasce da violência. 
Quero ser mulher de um mercenário, 
de um poeta ou de um mártir, é igual.
 Eu sei fitar os olhos dos homens, 
sei quem merece a minha ternura. 






 Amalia Bautista

quarta-feira, 30 de março de 2016

terça-feira, 29 de março de 2016




Sem você bem que sou lago, montanha. 
Penso num homem chamado Herberto. 
Me deito a fumar debaixo da janela. 
Respiro com vertigem. Rolo no colchão.
 E sem bravata, coração, aumento o preço. 






 Ana Cristina César

segunda-feira, 28 de março de 2016




Se estiveres contente, dou-te uma maçã; 
 se tiveres medo, torço a tua mão; 
e se me deixares, quero apertar-te, 
sem te fazer mal, contra o coração.

 Se eu estiver contente, dás-me uma maçã? 
Se eu estiver com medo, torce a minha mão. 
E se tu quiseres, podes apertar-me, 
sem me fazer mal, contra o coração.

 Isto é um contrato, só com dois se faz: 
venho oferecer-to com desesperada
 calma, sendo incerto que estes nossos jogos
 possam dos amantes expulsar demónios. 






 Gastão Cruz
 (Foto de Julia Hetta)

sábado, 26 de março de 2016




Pega-me tu ao colo 
E leva-me para dentro da tua casa. 
Despe o meu ser cansado e humano 
E deita-me na tua cama. 
E conta-me histórias, caso eu acorde, 
Para eu tornar a adormecer. 
E dá-me sonhos teus para eu brincar 






 Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

quinta-feira, 24 de março de 2016




os ventos todos 
fechados dentro 
da minha mão. 
quantos ciclones 
queres ? 






 José Mário Silva

quarta-feira, 23 de março de 2016




__________alguém sem ter perdido ninguém, 
pode ficar confrontado com a ausência de uma pessoa 
que lhe queria dizer muito? 






 Maria Gabriela Llansol
 (Foto de Nishe)

terça-feira, 22 de março de 2016




Neste tempo de espigas de trigo armadas
 de pássaros armados
 de cultura armada
 e de religião armada
 não se pode comprar pão
 sem encontrar uma arma no interior 
não se pode colher uma rosa do campo 
sem que os seus espinhos nos arranhem o rosto
 não se pode comprar um livro
 que não vá explodir entre os nossos dedos. 






 Nizzar Qabbani

segunda-feira, 21 de março de 2016

parece que sempre choveu sobre mim




Às vezes paro à porta 
com o olhar perdido e habituado ao silêncio, 
há mais desertos ainda, dias
 e morte noutros olhos. 
Com a garganta habituada à sede, 
com os pés às feridas, 
saio para a rua
 e já não há umbrais.

Ando um dia, passo outro, 
acabo uma semana de vidros partidos
 e tosse mais velha. 
Hoje parece que sempre 
choveu sobre mim, 
e não me importa
 se a chuva já não se parece ao esquecimento 
e apenas deixa charcos, paredes mais sujas
 e fuligem e tristeza nos olhos de rímel, 
ainda tenho sede
 e não me importa
 voltar às coisas más e aos velhos tugúrios
 à procura de algo que não encontro nem recordo, 
que costuma principiar por um encontro,
 talvez por outra palavra
 e corre o perigo de crispar-se
 até à forma da folha da faca. 

Às vezes tudo é tão estranho 
que não basta continuar a andar.






Alfonso Berrocal
 (Foto de Ezgi Polat)

Dia Mundial da Poesia










quarta-feira, 16 de março de 2016




E a espera é não acontecer
 — 
 E a saudade é tudo ser igual. 






 Daniel Faria
 (Foto de Ezgi Polat)

terça-feira, 15 de março de 2016

Os dias traidores




São esses que nos passam pelas mãos
 com gestos quotidianos, 
onde nunca acontece
 nada mais senão a vida 
com minúscula, quero dizer. 
Os do chá com limão enquanto lá fora chove 
e se fuma no café para passar a tarde, 
os do regresso a casa pelas ruas do costume. 
São os dias das coisas pequenas
 que secretamente pactuam connosco 
o peso dos anos. 
Os dias traidores: 
silenciosos, amáveis 
são o futuro que pouco a pouco aproximam 
o oculto abraço da morte
 com a mesma doçura
 com que os braços do amigo acolhem o meu cansaço. 






 Silvia Ugidos
 (Foto de Katia Chausheva)

segunda-feira, 14 de março de 2016




Estava abraçada ao chão. 
Acreditei que tinha morrido e que a morte era dizer um nome sem parar. 






Alejandra Pizarnik
 (Foto de Laura Makabresku)

domingo, 13 de março de 2016

A difícil pergunta




Como se recusa o amor?, perguntavas, 
o sorriso brincando ao sol com as romãs. 






 Eugénio de Andrade
 (Foto de Natalia Drepina)

sexta-feira, 11 de março de 2016





A curva dos teus olhos dá a volta ao meu peito 






Paul Éluard

quinta-feira, 10 de março de 2016

Vem à Quinta-feira




É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja 
 ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. 
E se Paris for muito caro - sei que isto não está fácil - podemos ir a Guimarães 
 assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar. 
 Vem à Quinta-feira.
 A seguir, temos ainda a Sexta e talvez me esperes à porta do emprego, 
 e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare
 de acabar tão depressa. 
 Vem à Quinta-feira. 
 Mas não venhas nesta, vem na próxima. 
 Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
 profissional - sabes que isto não está fácil - e talvez nos dê hipótese de irmos
 a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo 
 para arranjar o cabelo, para arranjar o coração, 
 para elaborar a lista do que me falta fazer contigo. 
 Vem à Quinta-feira e não te demores.
 Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
 (sabes como gosto de pensar em tudo
 ao mesmo tempo)
 e afinal o que me falta fazer contigo
 não é caro:
 - viajar de auto-caravana,
 - dançar pela Estrada Nacional,
 - ver-te chorar. 
 Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente. 
 Vem à Quinta-feira. 
 Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes. 
 Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras, 
 eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona. 
 Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana. 
 Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
 Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
 - ou, pelo menos, é o que diz o Youtube. 
 Temos ainda tanto para fazer. 
 Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta. 






 Filipa Leal
 (Foto de Ezgi Polat)

quarta-feira, 9 de março de 2016




Nos dias nevoentos fecho as janelas, acendo a luz forte e deito-me no tapete. Leio ou penso. 
 Ou então fumo, enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem, 
 e as mais pesadas descem e as mais leves se tornam pesadas, até ser impossível destruir o silêncio. 






 Herberto Helder

terça-feira, 8 de março de 2016

Uma mulher




liga-me à sua maneira, diz do marido
 uma mulher cheia de nódoas negras 
ainda ontem me ofereceu 
um ramo de margaridas 
foi depois desta 
e levanta a blusa e aponta
 para uma negra na barriga 
e antes desta, mostra outra 
um ramo de violetas
bem cheirosas, ainda não murcharam 
vai variando nas flores para
 ver se me mantém entretida 
que quer que quer é a vida 






 Bénédicte Houart
 (Foto de Natalia Drepina)

segunda-feira, 7 de março de 2016




Por debaixo da luz condicionada dos calmantes
 adormeceram versos que não posso acordar. 
O quarto cerrado sobre o bosque, 
musgo indecifrável,
 a tundra do escuro
 E chove. 






 Joaquim Manuel Magalhães
 (Foto de Katia Chausheva)

domingo, 6 de março de 2016





Agora de ti não sei nada. Não desejo saber nada. 
Basta-me lembrar-te como quem recorda uma música e com ela
 chegam coisas cravadas de um outro mundo 


 Pedro Paixão





sábado, 5 de março de 2016




A minha boca enchia-se de areia, pedras e peixes pequenos entravam-me pelas narinas e pelos olhos turvos de sal, 
o impulso da água levava-me pela teia do mar, tropeçando num coral de gesso. 
Talvez os peixes sejam sinais de uma luz que armou o pano em vela de cruz aberta ao mar, 
onde ninguém sabe qual é o meio, se a guerra se a espuma. 






 António Ferra

sexta-feira, 4 de março de 2016




foi julieta por chorar 
romeu distante
 quem salgou o mar? 






 Mário Osório
 (Foto de Ezgi Polat)

quinta-feira, 3 de março de 2016




destruí as tuas fotografias: és agora uma lembrança indecisa. 
Ou um murmúrio, um som que prolonga o vazio. 






 Rui Nunes

quarta-feira, 2 de março de 2016




Hoje entardeci mais despida do que antigamente. 
Não sei se pelos bosques tão devastados 
se pelas bagas que colheste do meu dorso. 

 À tua sombra todos os amores são silvestres, 
só as amoras são frutos impossíveis. 






 Catarina Nunes de Almeida
 (Foto de Anna O)