segunda-feira, 29 de março de 2021

desorientação



 Entrar na tua vida tal qual um furacão, 
destrambelhar os móveis, a família, o dinheiro,
entrar-te na cabeça e, sem pedir perdão
 partir e regressar, ao ritmo de um romeiro. 

E ter a cama à espera, desejo que não esquece, 
e ter a tua boca, respiração de penas,
 apenas uma lágrima- o silêncio engrandece
 nossa constelação de estrelas tão pequenas. 

Amar-te ainda e sempre, e sempre mais, e tudo
 se assemelhar ao nome que te dou quando a sós, 
e saber que o que digo, quando me digo, mudo,
 nasce da fonte clara, me vem da tua voz 






 Miguel Martins

segunda-feira, 22 de março de 2021

geografia íntima


o que me dói tem um nome que não obedece a mapas:
a memória é um tempo desavindo.
 



Rui Nunes

domingo, 21 de março de 2021

a poesia



 

A poesia de uma mãe que grita da varanda
 chamando os filhos para a mesa. 
A poesia de um rádio que toca do outro lado
 de uma janela entreaberta.
 A poesia de um mendigo curvado à frente de um chapéu
 no passeio, à espera de esmola. 
A poesia de um charco quase seco entre as pedras. 
A poesia de uma mulher que se levanta da cama
 e procura às apalpadelas o sutiã na penumbra. 
A poesia de um cão que se espreguiça
 bocejando numa esteira.
A poesia de um televisor silenciado 
enquanto se ouve música e os corpos se afastam. 
A poesia de uma rua a meio da tarde 
em cujo extremo há uma fresta de luz que se projecta
 sobre o mar, atravessada pelos tombos de um bêbado. 
A poesia de uma voz ao telefone. 
A poesia de um autocarro que sobe a avenida 
cheio de gente ensimesmada. 
A poesia de um velho e desdentado vagabundo
 emborcando um pacote de vinho na escadaria de uma igreja.
 A poesia de uma mancha de óleo na calçada. 
A poesia de um gordo que se agacha 
com um cigarro entre os lábios
 para atar os sapatos ao fundo do balcão. 
A poesia de uma velha que retoca a maquilhagem
 ao espelho. 
A poesia de umas mãos que quase não são as minhas
 sondando (seduzindo?) o teclado… 

 Toda esta poesia que nunca cabe num poema 






 Roger Wolfe

quarta-feira, 17 de março de 2021

o labirinto


da flor


Para sobreviver à noite decidimos perder a memória.
 Cobríamo-nos com musgo seco e amanhecíamos num casulo de frio, perdidos no tempo. 
Mas, antes que a memória fosse apenas uma ligeira sensação de dor, 
registámos inquietantes vozes, caminhámos invisíveis na repetição enigmática
 das máscaras, dos rostos, dos gestos desfazendo-se em cinza.
 Escutámos o que há de inaudível em nossos corpos. 
 
Era quase manhã no fim deste cansaço.







Al Berto
(Foto de Natalia Drepina)

segunda-feira, 15 de março de 2021

sobre a cegueira



 

Cerré mi puerta al mundo; 
se me perdió la carne por el sueño
 Me quedé, interno, mágico, invisible, 
desnudo como un ciego.

 Lleno hasta el mismo borde de los ojos,
 me iluminé por dentro. 

 Trémulo, transparente, 
me quedé sobre el viento, 
igual que un vaso limpio 
de agua pura, 
como un ángel de vidrio 
en un espejo. 






 Emilio Prados

quarta-feira, 10 de março de 2021

morar-te




Magoa-me a saudade 
 do tempo em que te habitava
 como o sal ocupa o mar 






 Mia Couto
 (Foto de Ezgi Polat)

quinta-feira, 4 de março de 2021

desamparo




ao meio da noite às vezes desamparadamente
 acordas, não acordas: 
tão distante do mundo que o não tocas, 
tão distante do socorro do mundo que não existe ninguém em 
quem toques 






 Herberto Helder
 (Foto de René Groebli)

segunda-feira, 1 de março de 2021

casa



Queria ter a posição dos claustros 
A posição do monge antigo que os varre
 A posição do moribundo que pergunta as horas
 A posição das árvores quando as crianças sobem 
A posição dos ramos quando os ninhos nascem 
A posição de alguém que já não mora. Queria 
Como se tivesse
 A posição da casa e alguém me visitasse 






 Daniel Faria
 (Foto de Andrei Tarkovsky)