domingo, 27 de abril de 2014

Os olhos rasos de água e solidão


estava nua, só um colar lhe dava 
horizontes de incêndio sobre o peito, 
a transmutar, num halo insatisfeito,
 a rosa de rubis em quente lava. 
 estava nua e branca num estreito 
lençol que o fim do sono desdobrava 
e a noite era mais livre e a lua escrava
 e o mais breve pretérito imperfeito. 
 só o tempo verbal lhe fugiria, 
no alongar dos gestos e requebros, 
junto do espelho quando as aves vão.
 toda a nudez, toda a melancolia, 
a dor do mundo, a deslembrança, a febre,
 os olhos rasos de água e solidão. 




 Vasco Graça Moura

sábado, 26 de abril de 2014

Por desejo



despem-se diante dos olhos dois corpos de luz 
mas a inclinação da luz é rasa 
é a fricção dos corpos que ilumina a biblioteca 
dos livros perde-se a cor da antiguidade
 dos sorrisos inverte-se a obliquidade das palavras
 e em silêncio inveja-se a luz produzida
 as página e os corpos tocam-se de perto
 por desejo, imagino eu que leio só. 




 André Tomé

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Escrito no muro


Lembro-me, eram todos muito jovens, eu já o não era tanto, mas isso não impedia que, no branco extenuado dos mesmos muros, as minhas palavras encontrassem nas mãos dos meus amigos o natural contraponto, nesse desejo insensato de fazermos do olhar um bem comum. Naquela primavera, entre lúcida e ácida, tínhamos na noite o rio onde mergulhávamos inteiros, e as árvores que alguns de nós, com amorosa paciência, havíamos pintado nas paredes iam-se enchendo de pássaros. Uma manhã ouvi-os cantar muito cedo da minha varanda, enquanto a terra ia despertando para uma luz de vidro frágil, tão próxima da loucura, que a eternidade morava naquela claridade atravessada de pássaros. Daquele rio a meus pés estava dito que não conheceria senão a margem onde nenhum barco se demora. Mas era ali que a flor quente do pampilho nos dava por cima do joelho e vinha até a água. Às vezes havia vento 





 Eugénio de Andrade

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Poetas de rua







Daquele modo


Sobre o teu corpo caio 
daquele modo que o verão tem de espalhar os
 cabelos
 na água esparsa dos dias 
e faz das peónias uma chuva de oiro
 ou a mais incestuosa das carícias. 





Eugénio de Andrade

domingo, 20 de abril de 2014

O terceiro dia



Também eu ceei com os doze naquela ceia 
 em que eles comeram e beberam o décimo terceiro. 
 A ceia fui eu; e o servo; e o que saiu a meio; 
 e o que inclinou a cabeça no Meu Peito. 
 E traí e fui traído. 
 e duvidei, impacientemente, e descartei-me; 
 e pus com Ele a mão no prato e posei para o retrato
 (embora nada daquilo fizesse sentido). 
 Não subi aos céus (nem era caso para isso), 
 mas desci aos infernos (e pela porta de serviço):
 comprei e não paguei, faltei a encontros,
 cobicei os carros dos outros e as mulheres dos outros. 
 Agora, como num filme descolorido, 
 chegou o terceiro dia e nada aconteceu, 
 e tenho medo de não ter sido comigo, 
 de não ter sido comido nem ter sido Eu. 





 Manuel António Pina

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Toda a vida


E até quando pensa o senhor que podemos continuar neste ir e vir de um caralho? - perguntou-lhe.
 Florentino Ariza tinha a resposta preparada há já cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com todas as suas noites
 - Toda a vida - disse. 





Gabriel García Marquez

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Eu sei


(...)
a loucura é um braço solitário sorrindo eternamente




Mário Henrique Leiria
 (Foto de Katia Chausheva)

terça-feira, 15 de abril de 2014

Alguém chama


um risco na página 
um gesto furtivo
 um movimento 
de queda
 na sombra 
da sombra
 de um corpo, uma boca
 : alguém chama — palavras contra
 o sentido, contra a direcção 
do vento 




 Manuel Gusmão

segunda-feira, 14 de abril de 2014

sábado, 12 de abril de 2014

Fragmentos



Desconcertante é que tão grande tristeza caiba dentro de tão pequeno peito. 
Às vezes morre-se tanto, e tão cedo





Al Berto

sábado, 5 de abril de 2014

Depois do coração


Ontem adormeceste, ainda 
tínhamos as facas todas na boca
 e três por abrir.
 Ficou uma pousada
 em equilíbrio geométrico
 na linha dos lábios. 
Não sei de quem eram 
esses lábios onde
 o gume imóvel não deixava sair
 as palavras duras
 e, mais tarde, os pesadelos.
 Outras o cabo na minha mão, 
esqueci-a antes da última 
costela flutuante depois do coração. 
 De manhã éramos só nós, frios, 
e a memória das cinzas na rua. 
 A terceira foi como se nunca tivesse existido




 Margarida Ferra

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Quem Ilumina


Quando me olhas
 meus olhos são chaves,
 o muro tem segredos,
 meu temor palavras, poemas. 
Só tu fazes da minha memória 
uma viajante fascinada, 
um fogo incessante. 




 Alejandra Pizarnik
 (Foto de Katia Chausheva)