Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus
quarta-feira, 30 de abril de 2014
terça-feira, 29 de abril de 2014
domingo, 27 de abril de 2014
Os olhos rasos de água e solidão
estava nua, só um colar lhe dava
horizontes de incêndio sobre o peito,
a transmutar, num halo insatisfeito,
a rosa de rubis em quente lava.
estava nua e branca num estreito
lençol que o fim do sono desdobrava
e a noite era mais livre e a lua escrava
e o mais breve pretérito imperfeito.
só o tempo verbal lhe fugiria,
no alongar dos gestos e requebros,
junto do espelho quando as aves vão.
toda a nudez, toda a melancolia,
a dor do mundo, a deslembrança, a febre,
os olhos rasos de água e solidão.
Vasco Graça Moura
sábado, 26 de abril de 2014
Por desejo
despem-se diante dos olhos dois corpos de luz
mas a inclinação da luz é rasa
é a fricção dos corpos que ilumina a biblioteca
dos livros perde-se a cor da antiguidade
dos sorrisos inverte-se a obliquidade das palavras
e em silêncio inveja-se a luz produzida
as página e os corpos tocam-se de perto
por desejo, imagino eu que leio só.
André Tomé
sexta-feira, 25 de abril de 2014
quinta-feira, 24 de abril de 2014
Escrito no muro
Lembro-me, eram todos muito jovens, eu já o não era tanto, mas isso não impedia que, no branco extenuado dos mesmos muros, as minhas palavras encontrassem nas mãos dos meus amigos o natural contraponto, nesse desejo insensato de fazermos do olhar um bem comum.
Naquela primavera, entre lúcida e ácida, tínhamos na noite o rio onde mergulhávamos inteiros, e as árvores que alguns de nós, com amorosa paciência, havíamos pintado nas paredes iam-se enchendo de pássaros.
Uma manhã ouvi-os cantar muito cedo da minha varanda, enquanto a terra ia despertando para uma luz de vidro frágil, tão próxima da loucura, que a eternidade morava naquela claridade atravessada de pássaros.
Daquele rio a meus pés estava dito que não conheceria senão a margem onde nenhum barco se demora. Mas era ali que a flor quente do pampilho nos dava por cima do joelho e vinha até a água. Às vezes havia vento
Eugénio de Andrade
quarta-feira, 23 de abril de 2014
Daquele modo
Sobre o teu corpo caio
daquele modo que o verão tem de espalhar os
cabelos
na água esparsa dos dias
e faz das peónias uma chuva de oiro
ou a mais incestuosa das carícias.
Eugénio de Andrade
segunda-feira, 21 de abril de 2014
domingo, 20 de abril de 2014
O terceiro dia
Também eu ceei com os doze naquela ceia
em que eles comeram e beberam o décimo terceiro.
A ceia fui eu; e o servo; e o que saiu a meio;
e o que inclinou a cabeça no Meu Peito.
E traí e fui traído.
e duvidei, impacientemente, e descartei-me;
e pus com Ele a mão no prato e posei para o retrato
(embora nada daquilo fizesse sentido).
Não subi aos céus (nem era caso para isso),
mas desci aos infernos (e pela porta de serviço):
comprei e não paguei, faltei a encontros,
cobicei os carros dos outros e as mulheres dos outros.
Agora, como num filme descolorido,
chegou o terceiro dia e nada aconteceu,
e tenho medo de não ter sido comigo,
de não ter sido comido nem ter sido Eu.
Manuel António Pina
sexta-feira, 18 de abril de 2014
Toda a vida
E até quando pensa o senhor que podemos continuar neste ir e vir de um caralho? - perguntou-lhe.
Florentino Ariza tinha a resposta preparada há já cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com todas as suas noites
- Toda a vida - disse.
Gabriel García Marquez
quinta-feira, 17 de abril de 2014
Eu sei
(...)
a loucura
é um braço solitário sorrindo eternamente
Mário Henrique Leiria
(Foto de Katia Chausheva)
terça-feira, 15 de abril de 2014
Alguém chama
um risco na página
um gesto furtivo
um movimento
de queda
na sombra
da sombra
de um corpo, uma boca
: alguém chama — palavras contra
o sentido, contra a direcção
do vento
Manuel Gusmão
segunda-feira, 14 de abril de 2014
Fogo posto
Quero arder contigo, nesta eternidade feita de pontes atravessadas, kms nocturnos e segundos de asfaltos.
Al Berto
domingo, 13 de abril de 2014
sábado, 12 de abril de 2014
Fragmentos
Desconcertante é que tão grande tristeza caiba dentro de tão pequeno peito.
Às vezes morre-se tanto, e tão cedo
Al Berto
sábado, 5 de abril de 2014
Depois do coração
Ontem adormeceste, ainda
tínhamos as facas todas na boca
e três por abrir.
Ficou uma pousada
em equilíbrio geométrico
na linha dos lábios.
Não sei de quem eram
esses lábios onde
o gume imóvel não deixava sair
as palavras duras
e, mais tarde, os pesadelos.
Outras o cabo na minha mão,
esqueci-a antes da última
costela flutuante
depois do coração.
De manhã éramos só nós, frios,
e a memória das cinzas na rua.
A terceira foi como se nunca tivesse existido.
Margarida Ferra
quinta-feira, 3 de abril de 2014
Quem Ilumina
Quando me olhas
meus olhos são chaves,
o muro tem segredos,
meu temor palavras, poemas.
Só tu fazes da minha memória
uma viajante fascinada,
um fogo incessante.
Alejandra Pizarnik
(Foto de Katia Chausheva)
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