quinta-feira, 24 de abril de 2014

Escrito no muro


Lembro-me, eram todos muito jovens, eu já o não era tanto, mas isso não impedia que, no branco extenuado dos mesmos muros, as minhas palavras encontrassem nas mãos dos meus amigos o natural contraponto, nesse desejo insensato de fazermos do olhar um bem comum. Naquela primavera, entre lúcida e ácida, tínhamos na noite o rio onde mergulhávamos inteiros, e as árvores que alguns de nós, com amorosa paciência, havíamos pintado nas paredes iam-se enchendo de pássaros. Uma manhã ouvi-os cantar muito cedo da minha varanda, enquanto a terra ia despertando para uma luz de vidro frágil, tão próxima da loucura, que a eternidade morava naquela claridade atravessada de pássaros. Daquele rio a meus pés estava dito que não conheceria senão a margem onde nenhum barco se demora. Mas era ali que a flor quente do pampilho nos dava por cima do joelho e vinha até a água. Às vezes havia vento 





 Eugénio de Andrade