Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus
quinta-feira, 28 de junho de 2012
terça-feira, 26 de junho de 2012
Ninguém me disse
Ninguém me dissera que os incêndios são homens
a arder no interior das suas memórias com as mãos
nas têmporas e demónios à volta da mesa.
Ninguém
me falara da roseira que houve no jardim, já a morte
induzia a intempérie contra o meu corpo parado.
Ninguém me explicara que se sobrevive sem útero
na margem dos dias.
José Rui Teixeira
domingo, 24 de junho de 2012
E eu nunca te alcanço
De que serviu ir correr mundo,
arrastar, de cidade em cidade, um amor
que pesava mais do que mil malas; mostrar
a mil homens o teu nome escrito em mil
alfabetos e uma estampa do teu rosto
que eu julgava feliz? De que me serviu
recusar esses mil homens, e os outros mil
que fizeram de tudo para eu parar, mil
vezes me penteando as pregas do vestido
... cansado de viagens, ou dizendo o seu nome
tão bonito em mil línguas que eu nunca
entenderia? Porque era apenas atrás de ti
que eu corria o mundo, era com a tua voz
nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo
do amor de cidade em cidade, o teu nome
nos meus lábios de cidade em cidade, o teu
rosto nos meus olhos durante toda a viagem,
mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.
Maria do Rosário Pedreira
sábado, 23 de junho de 2012
Essa vertigem
Podia esquecer-te para sempre, não fora a vertigem
da tua sombra a cercar os meus olhos.
Graça Pires
sexta-feira, 22 de junho de 2012
Poemas perfeitos em noites escuras
Aqui o mar é sono perpétuo,
câmara para o mais terrível segredo.
Entro nele de mãos trémulas, certo
das minhas cedências. Recordo o sabor
salino de outras perdas, casas tombadas
das quais sou solitária ruína.
Eu, que tenho dado à insónia,
embebo-me agora nas águas de outro dialecto
- as palavras falham, e essa é a comunicação.
Vasco Gato
quinta-feira, 21 de junho de 2012
Talvez
Talvez nem tenha nome.
Anunciado só pelo frémito
da folhagem.
O riso invisível, o grito
de um pássaro, o escuro
da voz. Certa doçura,
certa violência.
O espesso, volúvel
tecido da noite agora a roçar
o corpo da água. E por fim
a muito lenta paixão
do fogo, sufocada.
Era o verão.
Eugénio de Andrade
quarta-feira, 20 de junho de 2012
terça-feira, 19 de junho de 2012
segunda-feira, 18 de junho de 2012
domingo, 17 de junho de 2012
sexta-feira, 15 de junho de 2012
Livro antigo
Violetas secas entre páginas de livros
onde em tempos anunciaram o amargor da noite
e a humidade tremenda das insónias
o mar
o mar ao longe
debruça-se então para o interior do livro
lê qualquer coisa sobre o coração dos líquenes
ou deambula de sílaba em sílaba onde
os dedos se mancham de tinta e no cérebro
ergue-se uma planta de cinza noite adiante
fechou o livro ao amanhecer
era como se tivesse envelhecido séculos
com as violetas
fecha a persiana e adormece
Al Berto
quinta-feira, 14 de junho de 2012
quarta-feira, 13 de junho de 2012
Uma confidência
A pele espera nas coisas a carícia do uso
como o cão anseia pelo dono.
O bordo do copo, os dentes do garfo.
Usurpar os lábios entreabertos
com a alma útil e desinteressada.
Um gole de. Faz-se tarde.
O vinho faz esquecer a pele do copo.
Porque tocar (pensa ela)
é uma confidência nocturna.
Lá fora as flores. As sebes.
O ressumar de amantes no cálice.
Toco-te com mãos alheias:
eis toda a confidência de que sou capaz.
Um vestido de seda a abrir na minha perna:
um osso para te fazer correr:
um ganido de amor à porta do prédio.
Rosa Alice Branco
terça-feira, 12 de junho de 2012
segunda-feira, 11 de junho de 2012
A noite ilumina-se
Para onde quer que nos voltemos na tempestade de rosas,
a noite ilumina-se de espinhos, e o trovão
da folhagem, antes tão leve nos arbustos,
segue-nos agora de perto.
Onde quer que se apague o incêndio das rosas,
a chuva inunda-nos o rio. Oh, noite tão distante!
Mas uma folha que nos encontrou é levada pelas ondas
e segue-nos até à foz.
Ingeborg Bachmann
domingo, 10 de junho de 2012
Dentro de nós
Apaga a luz quando entrares e
vem ver se em mim
ainda se cheira o mar,
rossio sagrado
onde as fadas tecem as tuas mãos
lacra com o teu corpo
esta ferida aberta, frágil trincheira
que transpões, como o primeiro canto
descortina as trevas
repara que dentro de nós
já é manhã.
Renata Correia Botelho
segunda-feira, 4 de junho de 2012
Sou eu
São as minhas mãos que tremem até não poder segurar os talheres
sou eu sentado na cama, transido de medo de acordar para viver
sou eu a vomitar de medo como desde os tempos da escola primária
sou eu a driblar o futuro, acabando por sair pela linha lateral
sou eu agora em espasmos, assemelhando-me a um campo de minas
sou eu agarrando-me aos poucos que me disseram alguma coisa
eu tentando não cair, não sabendo como vim parar a esta copa
sou eu com a morte nos olhos que trago dentro dos meus olhos
eu, fidelíssimo traidor, não entendendo porque me achei só
eu a fugir de encontrar-me e sempre na exaustão de me encontrar
eu em cada vivo, em cada morto, em cada esquina da cidade
eu em cada vivo, em cada morto, em cada esquina da cidade
sou eu não conseguindo adormecer e, adormecendo, não dormindo
sou eu sem saber fugir a uma luxúria que jamais me faz feliz
sou eu sem saber fugir a uma luxúria que jamais me faz feliz
eu a habitar um corpo doloroso, como semáforo amarelo
eu vendo outra coisa em cada coisa e em tudo palavras de papel
eu carregando o peso do passado sobre um futuro inexorável
eu mais mortal que os mortais e defrontando a imortalidade
sou eu com a cara e a alma à venda nos escaparates insensíveis
eu pedindo esmola a quem despreza o que lhe posso dar
sou eu rindo-me de mim para evitar chorar por tudo o mais
sou eu irremediavelmente sozinho para toda a eternidade
sou eu sem música de fundo, vendo-me num espelho desbotado
sou eu a fumar como se me defumasse para me poder comer
sou eu silenciando um grito por minuto e escrevendo no mel
eu vestindo toda esta nudez, só para só amar a verdade do amor
e se isto é difícil de entender, dizendo-te outra coisa não seria eu.
Miguel Martins
domingo, 3 de junho de 2012
sábado, 2 de junho de 2012
sexta-feira, 1 de junho de 2012
A infância
Era a minha altura. Um livro
em cima da cabeça marcava
o lugar que um lápis semestralmente
riscava na parede da cozinha.
A única sabedoria dos ossos, crescerem
como a teia sólida de um propósito
e a anatomia mais transparente.
Centímetro a centímetro
espigava o corpo imaginário, essa contabilidade
que era assim, íntima, pictórica,
como uma cena burguesa.
Traço a traço a parede da cozinha
tornou-se rupestre,
a infância uma ternura assustadora.
Esta era a minha altura.
Agora sou tão mais alto e mais pequeno
Pedro Mexia
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