Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus
sábado, 29 de março de 2014
sexta-feira, 28 de março de 2014
Vou-me deixar ficar
Ela olhou para ele com aquela enorme vontade de chorar e depois ficou calada.
Nesse dia sonhou que conseguia voar.
Patrícia Reis
quinta-feira, 27 de março de 2014
quarta-feira, 26 de março de 2014
Ninguém responde
Estou com a idade pousada nas mãos.
Explico-me com dedicação aos berços fundos
onde cada coisa dorme o seu medo de morrer.
Há na tristeza um perigo de terminar:
o eterno outono parece belo
a quem perdeu todas as sementes.
Pergunta-se um nome e ninguém responde.
Onde fica essa ilha a que só chegamos por naufrágio?
Vasco Gato
(Foto de Laura Makabresku)
terça-feira, 25 de março de 2014
segunda-feira, 24 de março de 2014
Estou ausente
Não interessa se falho na tarefa,
ao fim e ao cabo o imutável sempre
continuará imutável, e nada
somo ou tiro. A lua estará quieta
despertando-me sempre. Enquanto as margens
continuarão rasgadas pelo mar.
O sol continuará esse implacável
assombro. Sempre haverá uma aranha
a vomitar cristal e seda juntos.
Sempre haverá névoa. E continuará
a feroz ternura das tuas mãos.
Amalia Bautista
(trad. Inês Dias)
domingo, 23 de março de 2014
sábado, 22 de março de 2014
É tarde
Com o tempo na pele, o amanhã não passa de um vazio. Há uma mesa posta, um cigarro aceso e em cada sílaba, histórias por acabar.
Como quem está de passagem, corro a cortina. Tudo o que se agarra a mim são sombras.
Podia ter escrito sobre a tua ausência. É tarde. E com os lábios feridos não consigo dizer coisas bonitas.
Maria Sousa
sexta-feira, 21 de março de 2014
quarta-feira, 19 de março de 2014
Coisas que poderiam parecer inúteis
Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr-do-sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
indecisa a meio da noite, a constelação
dos teus olhos quando os abres, e algumas
folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
me vem ditar. E se me disserem que tenho
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
e ficarei só com a tua imagem, a estrela
de um sorriso triste, e o eco melancólico
de um adeus
Nuno Judice
terça-feira, 18 de março de 2014
domingo, 16 de março de 2014
Depois do branco e deserto inverno
A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome,
nem acredite no calendário,
nem possua jardim para recebê-la
Cecília Meireles
(Foto de Dara Scully)
sábado, 15 de março de 2014
Uma Escuridão Bonita
Era verdade, tínhamos tempo. A falta de luz também inventava mais tempo para as
pessoas estarem juntas, devagar.
Para mim a falta de luz era estar ali com ela, de mãos dadas - os meus lábios na espera dos lábios dela.
Para mim a falta de luz era estar ali com ela, de mãos dadas - os meus lábios na espera dos lábios dela.
Ondjaki
quarta-feira, 12 de março de 2014
O nome da paixão
Que nome te dar? Tu és única. Tu és todas. Ou talvez nenhuma.
Eu sou tu. Tu és eu. A outra metade de mim.
A parte de ti que de mim ficou. A parte de mim que foi contigo.
Ninguém me foi tão próximo. Ninguém me escapou tanto.
Como foi que constantemente nos encontrámos e nos perdemos?
Manuel Alegre
terça-feira, 11 de março de 2014
Por nada
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
Paulo Leminski
segunda-feira, 10 de março de 2014
Geografia íntima
respiro-te devagar
tenho medo da memória
da música e da inclinação da garganta
suspensos os dedos
curvos os beijos
o teu peito podia ser um navio
Isabel Mendes Ferreira
quinta-feira, 6 de março de 2014
Suave como o perigo
Suave como o perigo atravessaste um dia
com a tua mão impossível a frágil meia-noite
e a tua mão valia a minha vida, e muitas vidas
e os teus lábios quase mudos diziam aquilo
que era o pensamento.
Passei uma noite colado a ti como a uma árvore de vida
porque eras suave como o perigo,
como o perigo de viver de novo.
Leopoldo María Panero
quarta-feira, 5 de março de 2014
terça-feira, 4 de março de 2014
Talvez um dia use esse batom vermelho
Quando me levanto, não sei se estou doente ou se é só a solidão. Foram estas as tuas palavras ao balcão, entre as pessoas que entravam e saíam, e nenhuma reparava que havia alguém ali a gritar uma dor que de tão funda não se ouvia. Mal te conheço, mas depois disto é como se nos conhecessemos. Talvez um dia use esse batom vermelho, esses brincos dourados de metal barato a coroar o penteado de cabeleireiro, e no sorriso a mesma largura triste de uma distância que jamais se alcançará (será ela que nos une uma vez mais). Antes disso, vou falar-te das minhas manhãs quando me levanto. Um peso no corpo, uma morte no olhar, corredor estreito por onde os passos avançam em direcção ao copo onde dissolvo a vitamina C em água. Logo o cigarro, a primeira baforada, como se uma esperança, embora uma esperança de nada. Seguir para o banho, copo e cigarro, o espelho em frente, cercado por azulejos brancos macabros. O resto já sabes, não preciso dizê-lo.
Somos assim dois, eu e tu. Guarda segredo.
Jorge Roque
domingo, 2 de março de 2014
Quando vier
Sei que darei ao meu corpo os prazeres que ele me exigir.
vou usá-lo, desgastá-lo até ao limite suportável,
para que a morte nada encontre em mim quando vier.
Al Berto
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