segunda-feira, 25 de novembro de 2024

o amor é para os parvos




Inevitável. A palavra certa é inevitável e lembro-me que foi essa a palavra que me ocorreu enquanto te abraçava e tu me abraçavas a mim. Era forçoso que assim fosse, não porque o quisesses tu ou o desejasse eu. Não porque não te amasse, ou porque não me quisesses tu. Simplesmente tinha de acabar, de uma forma ou de outra e, sendo assim, antes terminasse com um abraço. Mas tinha que acabar. São coisas que não se explicam, ou que, tendo explicação, não podem justificar-se recorrendo às escorreitas equações da lógica. Eu gosto-te, tu gostas-me; logo: separámo-nos. Tu vais e eu fico. Sofres tu e eu sofro também, porque tem mesmo que ser assim e não podia ser de outra maneira. E, se calhar, tinhas razão – o amor é mesmo para os parvos.







 

Manuel Jorge Marmelo

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

o único poema



 

Não sei por onde andas agora 
lembro-te cada vez mais longe
 em dias assim, de chuva, de noite
 fechado nisto que não mudou 
Vejo-te às vezes por essas ruas
 se por acaso chega o Outono
 ou dores antigas e maiores 
vejo-te às vezes por essas ruas
 E digo adeus, sincero, míope
 as sílabas todas do teu nome
 o único poema que sei de cor
 e grito cada vez mais longe 







Nuno Camarneiro

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

terça-feira, 15 de outubro de 2024

diários





Toda la noche me abandonas lentamente como el agua cae
 lentamente. Toda la noche escribo para buscar a quien me busca. 

 Palabra por palabra yo escribo la noche 







 Alejandra Pizarnik

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

era




Era um pássaro alto como um mapa
 e que devorava o azul 
 como nós devoramos o nosso amor. 

Era a sombra de uma mão sozinha
 num espaço impossivelmente vasto 
 perdido na sua própria extensão. 

Era a chegada de uma muito longa viagem 
 diante de uma porta de sal
 dentro de um pequeno diamante. 

Era um arranha-céus
 regressado do fundo do mar. 

Era um mar em forma de serpente 
 dentro da sombra de um lírio. 

Era a areia e o vento 
 como escravos
 atados por dentro ao azul do luar. 







 Artur do Cruzeiro Seixas

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

o amor



 

o amor é o telefone a tocar, 
a mesma voz 
ou outra voz 
 mas nunca a voz
 certa






 Charles Bukowski

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

o vento




Hay que salvar al viento 
los pájaros queman el viento
 en los cabellos de la mujer solitaria 
que regresa de la naturaleza
 y teje tormentos 
Hay que salvar al viento





 Alejandra Pizarnik
 (Foto de Laura Makabresku)




terça-feira, 3 de setembro de 2024

cinema




 

Contaram-me que já tens outra 
e eu apiedei-me de ti.
 Nunca houve na história do cinema
 um remake de jeito. 






Dulce Maria Cardoso

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

silenciosamente




Nunca mais regressaste a casa desde agosto.
 Eu fiquei sentado na soleira da porta à espera 
da cura. Brincava ocasionalmente com o fogo, 
porque era a tua voz que me trazia o outono, 
era a fuligem nas tuas mãos que me ensinava
 a hermenêutica dos dilúvios e a mecânica 
da extinção das espécies. 

 Eu fiquei incendiado 
em compartimentos sem atributos térmicos, 
manuseando de um modo temerário coisas 
como dogmas ou outros objectos teosóficos. 

 Mas nunca mais regressaste a casa e eu aprendi
 a soletrar silenciosamente o teu regresso. 






 José Rui Teixeira
 (Foto de Ezgi Polat)

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

domingo, 4 de agosto de 2024

recados escritos à pressa


 

Vem, antes que os meus olhos só vejam o que tu não vês,
 e as minhas mãos já não toquem o que tu tocaste
e a tua boca se canse de procurar o que de ti ainda possuo, 
 e do teu nome não reste mais que uma metade do meu 





 Al Berto

domingo, 28 de julho de 2024

o amor em visita



 

Em minha defesa, as suas mãos. Em minha defesa, os seus braços. 
Em minha defesa, o modo como sentados ficávamos somente a ouvir a respiração um do outro,
 ele disse, isto chega. O meu corpo era uma casa que eu fechara para o inverno. 
Não devia ter sido assim tão difícil, vazia que ela estava. 
Ainda assim, olhei longamente antes de apagar as luzes. 
 O meu corpo era construção abandonada, andaimes de restauração que se tornaram permanentes.
 O meu corpo inacabado tornou-se o meu corpo acabado. 
Pelo que, em minha defesa, quando ele me tocou as luzes do meu corpo acenderam.
 Em minha defesa, as janelas abriram de par em par.
Em minha defesa primavera

 







Cristin O'Keefe Aptowic

quarta-feira, 24 de julho de 2024

à flor da pele




Uma demora lenta nas palavras
 um calor bom na palma das mãos
 uma maneira de gostar das pessoas e das coisas 
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies 
beber aos golinhos o café a ferver
 ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo 
viver viver roçando as coisas ao de leve 
sem poupar o veludo das mãos e do corpo 
sem regatear o amor à flor da pele
 olhar em torno de si perdida ou esperar o verão
 e saber de um saber obscuro que o calor 
todo o calor é de mais dentro que vem 






 Rui Caeiro
(Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 16 de julho de 2024

silêncio




Há que fazer
 uma ampliação
 nesta casa
 já não há onde 
guardar 
tanto silêncio 





 Carmen Gloria Berríos
 (Traduzido por Maria Sousa)

terça-feira, 9 de julho de 2024

a luz



 

A luz do ar; 
a luz da brisa; 
a luz da ausência de companhia humana;
 a luz da hesitação; 
a luz da vontade de dormir; 
a luz de ter uma língua em que uma parte escurece; 
a luz de ir contra o risco do tempo; 
a luz de terminar a frase 







Maria Gabriela Llansol,

quarta-feira, 26 de junho de 2024

dorme cá hoje




 Tenho uma almofada a mais
 feita de memory foam das televendas
 onde a curvatura do teu crânio
 já foi adivinhada 

 Praticamos o modo bed and breakfast,
 aceito dinheiro ou cartões
 mas não te dou crédito, 
em troca levo-te o cafe à cama 

 Não estranhes este meu hábito 
de deixar a luz acesa
 para fingir que está alguém em casa 
ou o outro de deixar 
pernas e portas entreabertas
 esperando que o último a sair
 se lembre de as fechar 

 Não espreites o quartinho dos arrumos,
onde guardo a esfregona, 
os homens que corroem 
e o óleo de cedro para os móveis

 O meu chão vai ranger 
quando o privares do teu peso; 
por hoje, torna-te o homem-a-dias 
que vem arejar este quarto alugado 

 Descansa se ouvires sons de ossos
 a estalar durante a noite;
 são só os meus esqueletos
 a dançar vitoriosos no armário 






 Ana Bessa Carvalho

segunda-feira, 10 de junho de 2024

sem pecado





Por uma vez a velocidade foi um lugar firme
 entre as paredes. Tirei dela uma mão-cheia, 
duas, três. Não sei o que disseste_ o teu corpo 
era uma espécie de obstáculo à precisão, 
o erro reincidente na rotação de um compasso 

As árvores tinham pressa de chegar a qualquer lado, 
mas tu eras de uma seda mais veloz
 e corrias nos meus dedos sem remorso nem pecado 






 Rui Pires Cabral

sexta-feira, 7 de junho de 2024

quase




Não me movo, 
quase não respiro, 
tento não existir, 
estou sem estar, 
sou paisagem, 
sou o nada dentro de tudo, 
sou um peixe a boiar no escuro, 
sou um pedaço de céu, 
uma nuvem, uma árvore, 
um agapanto em pranto,
 uma planta a secar num vaso, 
carente de água e de gestos de ternura. 







 Raquel Serejo Martins
(Foto de Katia Chausheva)

segunda-feira, 3 de junho de 2024

rente ao dizer





Devias estar aqui rente aos meus lábios
 para dividir contigo esta amargura
 dos meus dias partidos um a um








 Eugénio de Andrade

segunda-feira, 20 de maio de 2024

mudar de amor



 

Não é fácil mudar de casa, 
de costumes, de amigos, 
de segunda-feira, de varanda. 
Pequenos ritos que nos foram 
fazendo como somos, a nossa velha
 taberna, cerveja
 para dois. 
Há coisas que não arrasta a bagagem: 
o céu que levanta uma persiana,
 o cheiro a tabaco de um desejo,
 os caminhos batidos do nosso coração. 
Não é fácil desfazer as malas um dia 
numa chuva diferente, 
mudar sem mais de lua,
 de névoa, de jornal, de vozes, 
de elevador. 
E sair para uma rua que nunca pressentiste, 
com outros pardais que já
 não te perguntam, outros gatos 
que não sabem o teu nome, outros beijos 
que não te vêem chegar. 
Não, não é fácil mudar agora de chaves. 
 
E muito menos fácil, 
já sabes
 mudar de amor 







 Ángeles Mora

quarta-feira, 8 de maio de 2024

terça-feira, 7 de maio de 2024

devagar



 

Não sei, minha mãe, o que escondeste nas sílabas, 
que violenta neblina lá guardaste, 
mas não esqueço a euforia do espanto, 
essa festa distante onde chamava por ti devagar, 
sempre tão devagar. 






José Oliveira Fernandes

segunda-feira, 15 de abril de 2024

a memória guardada





No armário do meu quarto escondo de tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto. 
 É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de longas hastes delicadas. 
 Eu o quis com paixão e o vesti como um rito, meu vestido de amante. 
 Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido. 
 É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada: 
 eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
 De tempo e traça meu vestido me guarda. 






 Adélia Prado

quinta-feira, 11 de abril de 2024

sexta-feira, 5 de abril de 2024

é a vida




sim, já me lembro: a casa e a cama, 
o lugar à mesa, a pequena chama 

 - onde estás agora, sol branco, dilema
 quebrada a promessa, traído o poema?

 giram no vazio destroços, venenos, 
o pouco que sobra do mal que sabemos

 e ainda te sinto, mudado, disperso, 
na pista de dança, na berma de um verso 

- a noite, o exílio, a aposta perdida, 
bebes mais um copo, dizes que é a vida 









 Rui Pires Cabral

segunda-feira, 18 de março de 2024

memória futura


Guardo numa gaveta de velhos objectos as tuas palavras, 
até que o bolor do futuro as apague
 - para que só eu saiba o que nunca me disseste.







Nuno Júdice

terça-feira, 12 de março de 2024

se eras tu




Pergunta-me 
  se eras tu 
 quem eu via 
 na infinita dispersão do meu ser 
 se eras tu
 que reunias pedaços do meu poema 
 reconstruindo
 a folha rasgada 
 na minha mão descrente 






 Mia Couto
(Foto de Nishe)

segunda-feira, 4 de março de 2024

promessas




Quando me cansar de voar ou a ferida estiver finalmente visível, 
promete-me que a faca será afiada e silenciosa. 
Que eu não a veja chegar, como se não tivesse passado uma vida
 a pressenti-la nas dobras do lençol, mortalha de tantas noites.
 E antes, dá-me de beber entre as mãos, 
conta-me de céus azuis, sem garras e sem abismos.
 Espera que o meu coração de novo pequenino 
se aninhe no calor das tuas veias  e se torne
  apenas a memória de um sobressalto contra a tua pele





 Inês Dias
 (Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

as tuas cartas




o tojo abundava nas vertentes, 
havia as rochas, os montes amarelos,
 o rumor fundo dos bichos na arcadura
 das chãs.
 entre o meu silêncio e o teu 
cresceu um verso com a tua boca 
perto dos meus sentidos. 
sabíamos que a chuva regressaria
 eventualmente. as tuas cartas 
 ainda as tenho. 






 Rui Pires Cabral

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

falto-me



chego a casa e tenho medo de entrar neste silencio que é a tua falta 

 há muito que a tua falta é somente a minha falta
 iluminada pela tua






 Rui Nunes
 (Foto de Nishe)

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

destroços






Esqueci­-me do teu nome.
 Um nome que se esqueceu é a falta de um nome?
 Um nome é a falta de todos os nomes. 
 Mas um nome que falta, o que é? 








 Rui Nunes

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

essas saudades que vais tendo, são as minhas




Se eu desaparecer hoje 
E falo mesmo do meu corpo aqui tão sentado
 a escrever desde a ponta da língua à légua mais distante
 da minha vida, 
diz que compreendi. 

 Diz que sei que nada está onde é certo estar 
Que o amor súbito é a escada para o entendimento
 e come os espelhos
Diz que fui ar azul sobre campos de secura 
Estrada recta ao infinito, entre oliveiras, 
um acidente ao longe 
Que provei toda a sede quando engoli os homens 
Que queimei alegremente no ácido das palavras
 Que tombei em ricochete para que me vissem 
E que quando me viram me ergui animal 

 Diz que me viste nua, sempre 
Que corri por hospícios de olhos fechados 
 e a boca às avessas 
Que vivi mais ao alto do que em mundo plano
 e fui honesta na minha rente loucura 

 Diz que nunca esqueci a subida a um plátano 
 Que ninguém viveu no meu lugar, nem eu no de ninguém 
Que fui sim, o halo frio que enchi com esta pena pela
 minha ausência 
E que tudo o que disse foi com silêncio 

 Diz que sei, sobretudo, que ardemos juntos como ventosas,
 embora não queiras
 Que o teu corpo me serviu de andar nas pernas asmáticas 
 Que te agradeço ter-te oferecido lírios
 Que me reduziste o nojo da espécie 
Diz que eu, fui eu 

 Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos:
 - quanto em mim fui que não vivi 
quanto em ti é que fui eu? 

 Mas não te preocupes, não desapareço hoje 
Quando me conheceste já eu não existia, 
e tu sabes 
que essas saudades que vais tendo,
 são as minhas. 







 Cláudia R. Sampaio
 (Foto de Anka Zhuravleva)

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

acreditar no silêncio





Trazemos no fundo do casaco
 algumas canções usadas 
— e achamos, por vezes, que 
é para nós que as estrelas brilham,
 entre prédios demolidos e amores também. 
Acabamos, mais cedo ou mais tarde, 
por acreditar no silêncio.
 A felicidade, para outros, continua válida. 
Mas disso, obviamente, nada podemos saber. 





 Manuel de Freitas
 (Foto de Natalia Drepina)

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

um desgosto de amor




Olha, dou-te um desgosto de amor, 
 é muito interessante um desgosto;
 enquanto sofres, não te aborreces. 






Henri Jeanson
 (Foto de Natalia Drepina)