quarta-feira, 24 de julho de 2024

à flor da pele




Uma demora lenta nas palavras
 um calor bom na palma das mãos
 uma maneira de gostar das pessoas e das coisas 
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies 
beber aos golinhos o café a ferver
 ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo 
viver viver roçando as coisas ao de leve 
sem poupar o veludo das mãos e do corpo 
sem regatear o amor à flor da pele
 olhar em torno de si perdida ou esperar o verão
 e saber de um saber obscuro que o calor 
todo o calor é de mais dentro que vem 






 Rui Caeiro
(Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 16 de julho de 2024

silêncio




Há que fazer
 uma ampliação
 nesta casa
 já não há onde 
guardar 
tanto silêncio 





 Carmen Gloria Berríos
 (Traduzido por Maria Sousa)

terça-feira, 9 de julho de 2024

a luz



 

A luz do ar; 
a luz da brisa; 
a luz da ausência de companhia humana;
 a luz da hesitação; 
a luz da vontade de dormir; 
a luz de ter uma língua em que uma parte escurece; 
a luz de ir contra o risco do tempo; 
a luz de terminar a frase 







Maria Gabriela Llansol,

quarta-feira, 26 de junho de 2024

dorme cá hoje




 Tenho uma almofada a mais
 feita de memory foam das televendas
 onde a curvatura do teu crânio
 já foi adivinhada 

 Praticamos o modo bed and breakfast,
 aceito dinheiro ou cartões
 mas não te dou crédito, 
em troca levo-te o cafe à cama 

 Não estranhes este meu hábito 
de deixar a luz acesa
 para fingir que está alguém em casa 
ou o outro de deixar 
pernas e portas entreabertas
 esperando que o último a sair
 se lembre de as fechar 

 Não espreites o quartinho dos arrumos,
onde guardo a esfregona, 
os homens que corroem 
e o óleo de cedro para os móveis

 O meu chão vai ranger 
quando o privares do teu peso; 
por hoje, torna-te o homem-a-dias 
que vem arejar este quarto alugado 

 Descansa se ouvires sons de ossos
 a estalar durante a noite;
 são só os meus esqueletos
 a dançar vitoriosos no armário 






 Ana Bessa Carvalho

segunda-feira, 10 de junho de 2024

sem pecado





Por uma vez a velocidade foi um lugar firme
 entre as paredes. Tirei dela uma mão-cheia, 
duas, três. Não sei o que disseste_ o teu corpo 
era uma espécie de obstáculo à precisão, 
o erro reincidente na rotação de um compasso 

As árvores tinham pressa de chegar a qualquer lado, 
mas tu eras de uma seda mais veloz
 e corrias nos meus dedos sem remorso nem pecado 






 Rui Pires Cabral

sexta-feira, 7 de junho de 2024

quase




Não me movo, 
quase não respiro, 
tento não existir, 
estou sem estar, 
sou paisagem, 
sou o nada dentro de tudo, 
sou um peixe a boiar no escuro, 
sou um pedaço de céu, 
uma nuvem, uma árvore, 
um agapanto em pranto,
 uma planta a secar num vaso, 
carente de água e de gestos de ternura. 







 Raquel Serejo Martins
(Foto de Katia Chausheva)

segunda-feira, 3 de junho de 2024

rente ao dizer





Devias estar aqui rente aos meus lábios
 para dividir contigo esta amargura
 dos meus dias partidos um a um








 Eugénio de Andrade

segunda-feira, 20 de maio de 2024

mudar de amor



 

Não é fácil mudar de casa, 
de costumes, de amigos, 
de segunda-feira, de varanda. 
Pequenos ritos que nos foram 
fazendo como somos, a nossa velha
 taberna, cerveja
 para dois. 
Há coisas que não arrasta a bagagem: 
o céu que levanta uma persiana,
 o cheiro a tabaco de um desejo,
 os caminhos batidos do nosso coração. 
Não é fácil desfazer as malas um dia 
numa chuva diferente, 
mudar sem mais de lua,
 de névoa, de jornal, de vozes, 
de elevador. 
E sair para uma rua que nunca pressentiste, 
com outros pardais que já
 não te perguntam, outros gatos 
que não sabem o teu nome, outros beijos 
que não te vêem chegar. 
Não, não é fácil mudar agora de chaves. 
 
E muito menos fácil, 
já sabes
 mudar de amor 







 Ángeles Mora

terça-feira, 7 de maio de 2024

devagar



 

Não sei, minha mãe, o que escondeste nas sílabas, 
que violenta neblina lá guardaste, 
mas não esqueço a euforia do espanto, 
essa festa distante onde chamava por ti devagar, 
sempre tão devagar. 






José Oliveira Fernandes

segunda-feira, 15 de abril de 2024

a memória guardada





No armário do meu quarto escondo de tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto. 
 É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de longas hastes delicadas. 
 Eu o quis com paixão e o vesti como um rito, meu vestido de amante. 
 Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido. 
 É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada: 
 eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
 De tempo e traça meu vestido me guarda. 






 Adélia Prado

quinta-feira, 11 de abril de 2024

sexta-feira, 5 de abril de 2024

é a vida




sim, já me lembro: a casa e a cama, 
o lugar à mesa, a pequena chama 

 - onde estás agora, sol branco, dilema
 quebrada a promessa, traído o poema?

 giram no vazio destroços, venenos, 
o pouco que sobra do mal que sabemos

 e ainda te sinto, mudado, disperso, 
na pista de dança, na berma de um verso 

- a noite, o exílio, a aposta perdida, 
bebes mais um copo, dizes que é a vida 









 Rui Pires Cabral

segunda-feira, 18 de março de 2024

memória futura


Guardo numa gaveta de velhos objectos as tuas palavras, 
até que o bolor do futuro as apague
 - para que só eu saiba o que nunca me disseste.







Nuno Júdice

terça-feira, 12 de março de 2024

se eras tu




Pergunta-me 
  se eras tu 
 quem eu via 
 na infinita dispersão do meu ser 
 se eras tu
 que reunias pedaços do meu poema 
 reconstruindo
 a folha rasgada 
 na minha mão descrente 






 Mia Couto
(Foto de Nishe)

segunda-feira, 4 de março de 2024

promessas




Quando me cansar de voar ou a ferida estiver finalmente visível, 
promete-me que a faca será afiada e silenciosa. 
Que eu não a veja chegar, como se não tivesse passado uma vida
 a pressenti-la nas dobras do lençol, mortalha de tantas noites.
 E antes, dá-me de beber entre as mãos, 
conta-me de céus azuis, sem garras e sem abismos.
 Espera que o meu coração de novo pequenino 
se aninhe no calor das tuas veias  e se torne
  apenas a memória de um sobressalto contra a tua pele





 Inês Dias
 (Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

as tuas cartas




o tojo abundava nas vertentes, 
havia as rochas, os montes amarelos,
 o rumor fundo dos bichos na arcadura
 das chãs.
 entre o meu silêncio e o teu 
cresceu um verso com a tua boca 
perto dos meus sentidos. 
sabíamos que a chuva regressaria
 eventualmente. as tuas cartas 
 ainda as tenho. 






 Rui Pires Cabral

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

falto-me



chego a casa e tenho medo de entrar neste silencio que é a tua falta 

 há muito que a tua falta é somente a minha falta
 iluminada pela tua






 Rui Nunes
 (Foto de Nishe)

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

destroços






Esqueci­-me do teu nome.
 Um nome que se esqueceu é a falta de um nome?
 Um nome é a falta de todos os nomes. 
 Mas um nome que falta, o que é? 








 Rui Nunes

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

essas saudades que vais tendo, são as minhas




Se eu desaparecer hoje 
E falo mesmo do meu corpo aqui tão sentado
 a escrever desde a ponta da língua à légua mais distante
 da minha vida, 
diz que compreendi. 

 Diz que sei que nada está onde é certo estar 
Que o amor súbito é a escada para o entendimento
 e come os espelhos
Diz que fui ar azul sobre campos de secura 
Estrada recta ao infinito, entre oliveiras, 
um acidente ao longe 
Que provei toda a sede quando engoli os homens 
Que queimei alegremente no ácido das palavras
 Que tombei em ricochete para que me vissem 
E que quando me viram me ergui animal 

 Diz que me viste nua, sempre 
Que corri por hospícios de olhos fechados 
 e a boca às avessas 
Que vivi mais ao alto do que em mundo plano
 e fui honesta na minha rente loucura 

 Diz que nunca esqueci a subida a um plátano 
 Que ninguém viveu no meu lugar, nem eu no de ninguém 
Que fui sim, o halo frio que enchi com esta pena pela
 minha ausência 
E que tudo o que disse foi com silêncio 

 Diz que sei, sobretudo, que ardemos juntos como ventosas,
 embora não queiras
 Que o teu corpo me serviu de andar nas pernas asmáticas 
 Que te agradeço ter-te oferecido lírios
 Que me reduziste o nojo da espécie 
Diz que eu, fui eu 

 Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos:
 - quanto em mim fui que não vivi 
quanto em ti é que fui eu? 

 Mas não te preocupes, não desapareço hoje 
Quando me conheceste já eu não existia, 
e tu sabes 
que essas saudades que vais tendo,
 são as minhas. 







 Cláudia R. Sampaio
 (Foto de Anka Zhuravleva)

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

acreditar no silêncio





Trazemos no fundo do casaco
 algumas canções usadas 
— e achamos, por vezes, que 
é para nós que as estrelas brilham,
 entre prédios demolidos e amores também. 
Acabamos, mais cedo ou mais tarde, 
por acreditar no silêncio.
 A felicidade, para outros, continua válida. 
Mas disso, obviamente, nada podemos saber. 





 Manuel de Freitas
 (Foto de Natalia Drepina)

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

um desgosto de amor




Olha, dou-te um desgosto de amor, 
 é muito interessante um desgosto;
 enquanto sofres, não te aborreces. 






Henri Jeanson
 (Foto de Natalia Drepina)