domingo, 30 de novembro de 2014

Da melancolia



Alguém entrou na memória branca, na imobilidade
 do coração. 
 Vejo uma luz debaixo da névoa e a doçura do erro
 faz-me fechar os olhos.
 É a ebriedade da melancolia;como aproximar o
 rosto de uma rosa doente, indecisa entre o perfume e
 a morte 




 Antonio Gamoneda

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Canta-me a alma



Há lugares onde esperar a primavera 
como tendo na alma o corpo todo nu. 
 (...)
É preciso cantar como se alguém
 soubesse como cantar. 




 Herberto Helder

terça-feira, 25 de novembro de 2014




afinal o que importa é não ter medo: 
 fechar os olhos frente ao precipício 
e cair verticalmente no vício.  





Mário Cesariny

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Cegueira



Um traço agudo e anónimo, apesar
 de nela o coração fazer publicidade,
 não dá
 da pele a exacta dimensão. 
 Qualquer de nós o sabe, ao exibirmos
 as correias que prendem ao destino o coração
 sentimos 
romper-se a pele sob a cegueira dos tecidos.





 Luís Miguel Nava

domingo, 23 de novembro de 2014

Domingo



Nenhum desejo neste domingo 
 nenhum problema nesta vida 
o mundo parou de repente
 os homens ficaram calados 
domingo sem fim nem começo. 
 A mão que escreve este poema 
não sabe o que está escrevendo
 mas é possível que se soubesse 
nem ligasse 




 Carlos Drummond de Andrade
 (Foto de Katia Chausheva)

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Poemas perfeitos em noites escuras



te remuerden los días 
 te culpan las noches
 te duele la vida tanto tanto 
 desesperada ¿adónde vas? 
 desesperada ¡nada más! 




 Alejandra Pizarnik

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Todos os nomes da intranquilidade



Os sentimentos são paisagens áridas, imprecisas, tremeluzentes, desconfortáveis. 
Dito isto, poderia fechar a porta, correr as grades, trancar o cadeado, dar a loja por encerrada, sem previsões de reabertura.
 Fechados lá dentro, os sentimentos, bem, seria como se não existissem 
Talvez morressem, se desidratassem, se pulverizassem, talvez deles restasse apenas uma mancha de gordura no chão.
 Em qualquer caso, emudeceriam. Ou não seriam escutados, o que vem a dar ao mesmo. 
Nunca contemplei esta hipótese por mais de cinco minutos – certamente, nem tanto. 
Não consigo. Não sei. Julgo que, no fundo, é o que menos quero. E que essa é a raiz da minha resistência. Crónica e aguda.
 Os sentimentos são onde sei viver, onde me sinto menos morto. 
Os sentimentos sou eu. 
Os melhores.
 Os piores. 
O beijo. 
A bala. 
(Ou vice-versa). 







 Miguel Martins

domingo, 16 de novembro de 2014

Mar de novembro




Quando eu morrer voltarei para buscar
 Os instantes que não vivi junto do mar 





 Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 15 de novembro de 2014

Uma palavra esquecida



esperar que voltes é tão inútil como o
 sorriso escancarado dos mortos na necrologia dos jornais
 e no entanto de cada vez que
 a noite se rasga em barulhos e
 um telefone se debruça de
 uma qualquer janela
 sinto que ainda ficou uma
 palavra minha esquecida na
 tua boca e que 
vais voltar
 para
 a
 devolver 




 Alice Vieira

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Emboscada



Abro a casa 
 para o teu silêncio 
Mas não tenho leito 
Para o teu cansaço 




 Mia couto

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Versos afiados contra os dedos



o vento agita as sombras 
na minha mão, lança-me 
vultos, um nome em chamas, versos 
afiados contra os dedos. 
 sempre pressenti a distância mínima
 entre o poema e o medo 
de não saber regressar a casa. 





Renata Correia Botelho

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Nem sei



Todos foram saindo, de mansinho,
 tão calados, 
que eu nem sei 
se fiquei mesmo só.





João Guimarães Rosa

sábado, 8 de novembro de 2014

Eu também



Se eu só pudesse ter um quadro em casa, sabe de que pintor seria? Rothko. 
 São telas quase iguais umas ás outras. Um quadrado , outro por cima. 
E no entanto eu fico ali horas esquecido a olhar para aquilo 




 António Lobo Antunes
 ( Em entrevista a José Mário Silva)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Em que espelho



Eu não tinha este rosto de hoje,
 assim calmo, assim triste, assim magro, 
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. 
Eu não tinha estas mãos sem força, 
 tão paradas e frias e mortas; 
 eu não tinha este coração que nem se mostra.
 Eu não dei por esta mudança,
 tão simples, tão certa, tão fácil: 
 Em que espelho ficou perdida a minha face? 




 Cecília Meireles

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Labirinto



Sozinha caminhei no labirinto 
Aproximei meu rosto do silêncio e da treva 
Para buscar a luz dum dia limpo






Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Rusga



Os cães dormem finissimamente. Vejo-os resumidos em
 torno do chão, peneirando serenos as dunas do sono. Já 
eu, reproduzo a insónia de uma forma quase fabril: de hora 
em hora, de noite em noite. É a metalurgia de algo que não
 funde, eu e a fornalha das minhas burlas, dos meus 
 prejuízos. Entendo que cada homem, superando o receio
 de excomunhão, devolva o seu corpo à indiscrição. Corpo
 no mundo como rusga. Revirar tudo, farejar como os cães
 a flor absurda do prazer. 





 Vasco Gato
 (Foto de Laura Makabresku)

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Os dias com vista para a melancolia



Vimos da escuridão e somos luz 
ou nascemos da luz e somos sombra? 




 Teresa Balté
 (Foto de Katia Chausheva)



O outono amadurece nos espelhos




 Eugénio de Andrade
 (Foto de Katia Chausheva)

domingo, 2 de novembro de 2014

Dor



Não sei quantas vezes chorei
 a boneca de papelão
 que se desfez na água 
 quando lhe dei um banho. 
 Eu não sabia que podem ser tão breves
 as coisas que abrigamos no próprio coração. 





 Graça Pires

sábado, 1 de novembro de 2014

O tempo sobre a pele











Este lilás desfolha-se. 
De si mesmo cai
 e oculta a sua antiga sombra. 
Hei-de morrer de coisas assim. 




Alejandra Pizarnik
(Foto laura Makabresku)