quinta-feira, 31 de dezembro de 2015





Acompanhas a passagem de mais um ano 
com humor negro
 e juras de mudança de vida.
 A teu lado os amigos 
comprometem-se – pelo menos esta noite –
 a não deixar que diante de ti se abra 
um abismo de sujeições. 
 Mas pouco a pouco 
distrai-os a contagem decrescente,
 um fogo-de-artifício 
no céu televisionado. 
 Habituaste-te
 a acertar as horas
 pelo rumor de uma estrela, 
acendendo cigarro atrás de cigarro,
 embora às vezes ainda esperes
 Qualquer recompensa 
do tempo inamovível. 






 Jorge Gomes Miranda
(Foto de Ezgi Polat)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015




mascaro os dias com palavras cujo significado perdi






terça-feira, 29 de dezembro de 2015




O fumo, os cafés, o gajo que te traz de madrugada,
 aquele parceiro que escapou, este que vem acordar-te, 
as carícias, a coragem, uma manhã com Rimbaud

Se o que ajuda a viver, o verdadeiro, custa quase nada 
porque é tão alto o preço da vida? 






 Violeta C. Rangel

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

domingo, 27 de dezembro de 2015




Hoje completei 10 anos. 
Fabriquei um brinquedo com palavras. 
Minha mãe gostou. 
É assim: 
 De noite o silêncio estica os lírios. 





 Manoel de Barros
 (Foto de Katia Chausheva)

sábado, 26 de dezembro de 2015




Um caminho tão largo que eu não saiba andar. 
Um caminho alarga. 
Há quem se sente num marco geodésico e diga: 
Deus






 Rui Nunes
 (Foto de Sónia Silva)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015




Em que esta trabalhando?”, perguntaram ao sr. Keuner. 
Ele respondeu: “Tenho muito que fazer, preparo o meu próximo erro.”






 Bertolt Brecht
( Foto de Natalia Drepina)

sábado, 19 de dezembro de 2015




e sobram tristeza e dias ao corpo que escreve
 no calabouço de uma manhã muito larga
 reluzente de gotas de mel 
 enquanto os gatos lambem o sábado 
 e sentado, sapo de ouro, permites-te pôr no mundo 
 (mas porquê) outro poema 






 Miguel Manso
 (Foto de Ezgi Polat)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015




Se lhes gritasse: 
"o amor entranha-se na mais pequena porção do espaço" 
Saberiam que falo do meu corpo? 






 Rosa Alice Branco
 (Foto de Cristina Coral)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015




Nós fomos
 mãos, 
esvaziámos a treva, encontrámos
 a palavra, que subia do verão:
 flor 

Flor - uma palavra de cegos. 
Os teus olhos e os meus olhos: 
vão em busca de água. 






 Paul Celan
 (Foto de Anna O)

terça-feira, 15 de dezembro de 2015





«Mil anos que escrevas», disse, «não saberás a quem» 





 Maria Gabriela Llansol

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015



Nunca saberemos se os enganados 
são os sentidos ou os sentimentos, 
se viaja o comboio ou a nossa vontade
 se as cidades mudam de lugar 
ou se todas as casas são a mesma.
 Nunca saberemos se quem nos espera
 é quem nos deve esperar, nem sequer 
quem temos de aguardar no meio 
de um cais frio. Não sabemos nada. 
Avançamos às cegas e duvidamos
 se isto que se parece com a alegria
 é só o sinal definitivo
 de que nos voltámos a enganar






 Amalia Bautista
 (Foto de Mariam Sitchinava)

domingo, 13 de dezembro de 2015




Há uma erva cujo nome não se sabe; assim foi a 
minha vida. 

Regresso a casa atravessando o Inverno: esquecimento 
e luz sobre as roupas húmidas. Os espelhos estão
 vazios e nos pratos cega a solidão. 

 Ah a pureza das facas abandonadas. 






 Antonio Gamoneda

sábado, 12 de dezembro de 2015




Impossível fugir a essa dura realidade 
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios 
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas 
Todos os maridos estão funcionando regularmente
 Todas as mulheres estão atentas 

Porque hoje é sábado






 Vinicius de Moraes

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015





"O teu amor espreita o meu corpo ao longe"









apenas preciso de alguém que me sorria e reponha
 o mesmo disco sempre a tocar e escute comigo o 
vento nas janelas e sinta a tristeza que têm os
 gladíolos murchando em cima da mesa 






 Al Berto
 (Foto de Natalia Drepina)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015




Considera este poema 
num impresso de IRS; 
considera que to dou de seguida 
como quem entrega o modelo 2. 
Considera a prestação de serviços, 
os encargos dedutíveis, 
as retenções na fonte, 
o total uma vogal gorda. 
Considera ainda as deslocações
 no sujeito passivo, 
a profissão de desgaste rápido,
 o consumo de água e de energia. 
Considera as correcções por excesso
 dos limites legais, 
as quotizações para o sindicato,
 os pagamentos dos serviços prestados
 por terceiros. 
Considera o mapa de
 amor
 tizações e reintegrações, 
o imobilizado corpóreo, 
o exercício reduzido a letras
 matemáticas de taxas e valores. 

Considera tudo isto: 
e paga o que deves. 






 Daniel Jonas

terça-feira, 8 de dezembro de 2015




Saio do sono como 
de uma batalha
travada em 
lugar algum 
 Não sei na madrugada 
se estou ferido
 se o corpo
 tenho
 riscado 
de hematomas 
 Zonzo lavo 
na pia
 os olhos donde
 ainda escorre 
uns restos de treva






 Ferreira Gullar
 (Foto de Laura Makabresku)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015




era o sopro distante das manhãs sobre o mar 
e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do
 coração
 é o silêncio é por fim o silêncio

vai desabar 






 Eugénio de Andrade

sábado, 5 de dezembro de 2015




ando, por aí, com a memória magoada, 
desavindo com o presente, farto de palavras engomadas para o futuro.

 o hoje é um tempo entre aspas, 
o amanhã um buraco negro de reticências






 Emanuel Jorge Botelho

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015




atrás de ti o caminho luminoso 
como se o abismo tivesse uma cabeleira branca. 






 José Tolentino de Mendonça
 (Foto de Natalia Drepina)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015




Apegamo-nos demasiado aos homens
 essas criaturas inocentes, bidimensionais, 
à sua pele
 adesiva como teia de aranha. 
 Eu ficaria ali até não deixar nada de mim.
 Nada. 
 Até que começamos a pesar-lhes 
como se engordássemos de repente.
 Então interrogamo-nos
 o que é que aconteceu 
e quando.
 Inevitavelmente fazemo-nos
 éticas patéticas pelempenpéticas 
pesadas cabeludas pelempenpudas 
aparecem-nos cãs e rugas
 cáries estrias verrugas 
o sangue não circula. 
Exploram-nos por dentro. 
Levam-nos a pele colada às tiras 
e nas mãos algum órgão fácil de vender. 
 Na verdade não sabem o que fazem
 querem só é livrar-se da carga. 






 Miriam Reyes

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015




Mais um dia de estrume para roseira nenhuma






 José Miguel Silva

terça-feira, 1 de dezembro de 2015




O amor calou-se. 
 É Dezembro. 
 Três velas ardem numa janela do litoral. 
 O farol apagou-se no cabo, 
 os remos jazem sobre as areias,
 os filhos dormem.
 É quase a morte. 







 José Agostinho Baptista

segunda-feira, 30 de novembro de 2015







"Vesti-me de sombra e senti o silêncio pousar-me no coração"







alguém te segura à beira da derrocada
 e te pergunta saberás se lá no fundo há
 algo que valha a pena? pode ser que sim, 
pode ser que não, ninguém sabe






 Helder Moura Pereira

domingo, 29 de novembro de 2015













Preciso de ti para um poema 
Ofereço-te em troca o meu auto-retrato sincero. Tenho quarenta livros prontos para serem lidos. Tenho uma estratégia infalível para implementar a primavera. Tenho a segurança de um corpo cheio de insónias, pele de galinha, súbitos arrepios, termómetros para novecentas febres, saliva muito devagar, pés descalços, arrebatamentos incomunicáveis, fins de noite numa garrafa de vinho, estilhaços de quatrocentos orgasmos, comoções, paixões flagrantes, primeiros cuidados para jovens suicidas, lâmpadas que se queimaram nas minhas próprias mãos. 






 Vasco Gato

sábado, 28 de novembro de 2015




Não sei o que vos diga. 
Vinha do outro lado do mundo
 e vestia-se com rosas e arame. 
Tinha a poesia no corpo.
 Perante isso – graça
 ou desencanto –
 somos todos meros escriturários. 






 Manuel de Freitas

sexta-feira, 27 de novembro de 2015




Lentamente os dedos aperfeiçoaram a arte 
de pararem sussurrantes sobre o corpo 






 Al Berto

terça-feira, 24 de novembro de 2015




Ninguém me chama

 Escuto o calcanhar do pássaro 
Sobre a flor 
E não respondo 






 Daniel Faria

domingo, 22 de novembro de 2015




Primeiro esqueci o cheiro 
 E ao acordar já não senti o sabor da sua boca 
 Depois o corpo tornou-se memória
 Em vez de impressão 
 Esfumado, perdido, inglório 
 O seu rosto desaparecia
 Ficavam quase nem os contornos 
 E no fim sentia só uma tristeza 
 De promessa feita e não tornada 






 Miguel Soares

sábado, 14 de novembro de 2015




Isto não é Paris
 Isto não é Paris
 nem são cinco da tarde
 nem chove
 nem há cómicos na rua
 e tampouco nesta esquina
 desta cidade que não é Paris
 há um realejo surpreendido 
 e um pintor boémio
 e uma garrafa de vinho 
 porque às cinco da tarde
 esta cidade não é Paris
 e não existe um amor curioso
 escondido atrás da cortina 
 enquanto Edith Piaf canta
 Les amants de Paris
 Nem a recordação do Sena
 me leva as minhas memórias tristes 
 desta cidade sem noite
 nem espelhos de mel
 e não minto se disser
 que Paul Éluard saiu do meu quarto 
 com asas de melro branco
 pela janela desta cidade
 que não tem pombas nem bêbados alegres
 porque às cinco da tarde
 esta cidade não é Paris.






 Uberto Stabile
 (Foto de Robert Doisneau )

sexta-feira, 13 de novembro de 2015




O teu corpo 
Magoa-me como o mundo magoa deus. 






Sylvia Plath

quinta-feira, 12 de novembro de 2015










Rui Lage                                                                                      

quarta-feira, 11 de novembro de 2015






( quiero ver a qué sabe tu olvido )








Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. 
E então pensei: 
vou-te escrever.





 Vergilio Ferreira
 (Foto de Mariam Sitchinava)

terça-feira, 10 de novembro de 2015




Não invoques a de ontem porque ela já foi embora
 Desde que tu partiste morreu já muitas vezes
 E embora tenha renascido já nunca foi a mesma
 Mais frágil mais ingénua mais tímida umas vezes 
outras vezes mais sábia mais triste mais murcha 
 Mas sempre distinta e outra vez sempre 
 Às vezes conformada mais cheia do meu sangue
 como se tudo fosse novo tudo recém comprado
 água sol e ar e sombra 
 Tão resignada que até sorrio ao espelho que não 
 Tenho frente a mim 
 E outras vezes em guerra tão em guerra
 que o meu tacto é punhal que me agride as veias
 e as flores me ferem e o céu me criva
 e até o meu próprio corpo me danifica
 - Morro e volto a nascer a cada manhã
 a angustiada de ontem hoje não a busques 
 A eufórica de hoje
 talvez esta mesma noite se suicide
 abraçada ao travesseiro






 Josefina Plá
(Foto de Josephine Cardin)

segunda-feira, 9 de novembro de 2015




entre a saliva e os sonhos há sempre
 uma ferida de que não conseguimos 
regressar 






 Alice Vieira
(Foto de Natalia Drepina)

quinta-feira, 5 de novembro de 2015




Nada tão silencioso como o tempo 
no interior do corpo






 Fiama Hasse Pais Brandão
 (Foto de René Groebli)

quarta-feira, 4 de novembro de 2015




Se um dia me pedires, 
juro que te empresto 
o meu coração, tal como 
 guardei na boca o pequeno deus
 que te trazia tão curioso. 
A sério. Deixo-te tocar nele,
 sentir-lhe o peso, atirá-lo 
 contra a parede para depois
 o apanhares e retirares a pele 
de pêssego demasiado maduro. 

 Podes até queimá-lo - 
 com cuidado, por favor - 
 quando estiver mais frio; 
ou enterrar os restos debaixo
 das estrelícias, de propósito 
por saberes que não as suporto. 
Em troca, promete-me apenas 
 que depois me deixas fugir 
para saber como é isso de
 passar o resto da vida desembaraçada 
 finalmente desse peso morto. 






 Inês Dias
 (Foto Christian Schloe)

terça-feira, 3 de novembro de 2015




- Não é correcto tocares assim nas coisas
 - dizia-lhe a mãe. 
- Então, como se toca?
 - Com menos força, agarrando menos. Não te envolvas tanto. 






 Gonçalo M. Tavares

segunda-feira, 2 de novembro de 2015




Os meus dedos já souberam de cor a perfeição. 
 A morte era o menos. 
Só a beleza nos parecia intolerável 
se não a despedaçássemos, 
voz por voz, compasso a compasso, 
numa harmonia mais dócil. Menos urgente 
do que os músculos que ensaiávamos 
todos os dias sem nos tocarmos.
 Agora ouço outras mãos
 a tactear o mesmo mistério e
 é como segredar, pianississimo, 
ao ouvido de alguém demasiado longe, 
quando afinal adormeceste apenas
 dentro de mim, com as garras
 cravadas ao de leve na memória






 Inês Dias
 (Foto de Natalia Drepina)

domingo, 1 de novembro de 2015




Nas ruínas de novembro
 a triste jardinagem dos poemas 
por abrir






 José Miguel Silva

sexta-feira, 30 de outubro de 2015








(ás vezes isto é um poema diário, outras um diário poema)









Quando desapareceu o último porto de abrigo
 refugiei-me no lugar comum da tristeza 
a fechar feridas antigas a perdoar traições
 talvez um dia possa tentar tudo de novo 
com o despudor de todos os recomeços. 






 Carlos Alberto Machado
 (Foto de Anna O)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015




queria que o meu amor morresse 
e a chuva chovesse sobre o cemitério
 e sobre mim pelas ruas onde eu andar
 chorando aquel(e) que julgou amar-me 






 Samuel Beckett

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Encontro (desencontro)




Ele não apareceu. 
 Talvez tenha adoecido ou ficado debaixo de
 um eléctrico. Talvez outra pessoa se pusesse na conversa com ele. 
Talvez se tenha esquecido do relógio, 
ou o relógio se tenha esquecido de lhe dar o tempo certo. 
Talvez o carro não pegasse, 
 ou tenha ficado avariado a meio do caminho. 
Talvez alguém lhe telefonasse quando ia a sair de casa, 
 dizendo-lhe que tinha de ir a um funeral 
ou que a mãe dele tinha morrido. 
Talvez tenha encontrado um antigo conhecido. 
Talvez tenha tido uma discussão no emprego, 
 tenha sido despedido e esteja a esconder
 a cabeça debaixo de uma almofada. 
Talvez a ponte estivesse fechada e
 a seguinte também. 
Talvez o semáforo permanecesse vermelho. 
Talvez o multibanco tenha engolido o cartão 
 ou a meio do caminho tenha reparado que se esquecera
 do porta-moedas. 
 Talvez tenha perdido os óculos,
 não conseguisse deixar de ler, 
houvesse um programa que ele queria acabar de ver, 
não conseguisse dar a volta à fechadura da porta,
 não encontrasse as chaves em sítio nenhum e 
o cão dele de repente começasse a vomitar. 
Talvez não houvesse um telefone por perto, 
não encontrasse o restaurante
 ou esteja à espera noutro sítio, por engano. 
 Talvez – a última possibilidade, 
incompreensível e inesperada – 
ele tenha deixado de me amar.


                                                                

                     (porque hoje precisei repetir este poema de que gosto tanto)




 Hagar Peeters