quarta-feira, 27 de setembro de 2023

melancolia




Mataste mil mulheres dentro de mim, 
e tornaste-te tu rainha 






 Nizar Qabbani
 (Foto de Laura Makabresku)

domingo, 24 de setembro de 2023

dias curtos




tem medo e em dias curtos
  decide envelhecer no interior da casa
  ao sono conhece-o como fuga ao silêncio
um dia escreveu (era domingo)
  sobre os vestígios da respiração nos pequenos nadas
anos depois refugia-se no outono
como quem vê a vida toda nas folhas.


 

 Maria Sousa

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

o gosto de uma ausência




Sondar
 a linguagem das trevas 
dormir
 na neve dos limites
 atravessar 
flores distraídas
 Decifrar
 numa pedra fria
 letras a arder 
entrar
 em comboios remotos
 no olho gigante
 das estações do fim do mundo
 Ser 
um sinal 
lançado ao acaso na noite 
deixar 
 noutra boca
 o gosto de uma ausência 
 Temos tão pouco tempo  
tão pouco sonho
 tão pouco 






 Ernesto Sampaio
 (Foto de Natalia Drepina)

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

dentro



Paixão
 é esta faca

 dentro, dentro

 atravessando os dias
 até rasgar a pele
 da mais íntima deserção 






 José Carlos Barros
(Foto de Nishe)

terça-feira, 5 de setembro de 2023

terça-feira, 29 de agosto de 2023

postais




Escreve sempre que precisares de me dizer 
que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico. 
Os legumes que trouxe ontem 
não sobrevivem a mais do que uma geada, 
muito menos nós. 

 Escreve sempre que precisares, podes 
dizer-me outra vez que nunca houve inverno, 
que este ano não há verão, 
que estamos aqui e não estamos porque não sabemos
se somos nós ou se somos aquelas
 quatro pessoas que vão à rua agora, 
encontraram a porta certa. 

 Escreve sempre que precisares, faz
 uma lista de compras, uma lista de desejos, 
anota todos os pedidos que deixaste 
em poemas atrasados. 
Escreve sempre que precisares 
de mais um postal com selo e carimbo.
 Escreve sempre que riscares 
na tua agenda mais uma morada. 

 Sempre que eu precisar vais devolver-me 
uma caligrafia rebuscada que não é a tua, 
curvas a mais que não fazias na letra d. 
Já não há desses manuscritos, 
só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los
 (e toda a gente sabe que nem isso é verdade). 
Vai escrevendo. Sempre que eu precisar,
 as frases podem desviar deixas decoradas,
 repetidas como as mentiras, 
demasiado gastas para serem inócuas. 






 Margarida Ferra

terça-feira, 15 de agosto de 2023

domingo, 13 de agosto de 2023

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

certos amores




Tenho saudades, dizias.
 Saudades do que foi, 
do que está a ser, 
do que será, 

sobretudo do que não será






 Manuel Alegre  

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

agosto




O corpo queixa-se por instantes, Agosto amarga. 
 Já quase ao crepúsculo procuras a casa, 
sempre quiseste saber se a profusão do silêncio era habitável. 

Era, mas só na extremidade. 






 Eugénio de Andrade

domingo, 30 de julho de 2023

o que se pode dizer



 


E eu estaria a pensar nas palavras do amor, 
 naquilo que se pode dizer quando a extrema 
 solidão nos dá um talento inconcebível 




 Herberto Helder 
 (Foto de Katia Chauseva)

terça-feira, 25 de julho de 2023

quinta-feira, 20 de julho de 2023

foste o meu verão




Sonho contigo aos beijos
 entre as minhas pernas, 
acordo, não acordo, quase não durmo, 
abro as persianas,
 fervo água,
faço um chá escuro como café, 
uma torrada com manteiga, 
de olhos fechados, 
queimo a língua,
 arde menos do que os meus pensamentos, 
de olhos fechados, 
como a torrada como se fosse um figo, 
enfio o Verão na boca, 
foste o meu Verão, 
só tive um Verão,
 de olhos fechados não chove, 
de olhos fechados é Verão 







 Raquel Serejo Martins

quarta-feira, 12 de julho de 2023

a insustentável leveza do ser




 

Tive muitos homens na minha vida, nenhum deles sabe nada de mim, 
eu já não sei nada de nenhum deles e pergunto a mim própria: 
para que terei vivido se ninguém guardar o menor sinal de mim? 
 Que ficou da minha vida? 







 Milan Kundera

domingo, 9 de julho de 2023

faltas-me



Se aqui estivesses isto não seriam palavras

faltas-me quando estás a caminho


  




Helder Moura Pereira

terça-feira, 4 de julho de 2023

julho



Estávamos em Julho, 
fechei o caderno contigo lá dentro,
 nunca mais voltei a apaixonar-me








Al Berto

quinta-feira, 29 de junho de 2023

a minha vida

 


comecei dezenas de histórias
e não terminei nenhuma,
não sei para onde vão as minhas personagens
porque começam a falar
e logo se calam.
no papel sucede-me o mesmo que fora dele:
a minha vida é um punhado de começos
suspensos




   Miriam Reyes

domingo, 25 de junho de 2023

domingo de manhã





Quantos homens 
se apaixonam por ti
 ao sábado à tarde
 enquanto passeiam os filhos
 no parque
 e se distraem 
do balanço
 do baloiço
na adivinhação
 das partes do corpo 
que trazes tapadas 

 Mal sabem que a tua solidão
 não se preenche 
com a desventura erótica 
de um corpo
 que te cubra 
sem consolo 
Não há falta 
de quem se deite
 contigo
 sábado à noite
 apenas quem acorde 
ao teu lado 
domingo de manhã 







Manuel Halpern

quinta-feira, 22 de junho de 2023

qual é a tua razão de ser?





À vinda do supermercado
 diz-me o pequeno monstro 
que às vezes me faz companhia:
 «E qual é a tua razão de ser?» 

 Na rua, a tarde rola devagar 
entre prédios murchos — e ele
 acrescenta: «Não me digas 
que são os versos.»

 E ri-se 





 Rui Pires Cabral

terça-feira, 6 de junho de 2023

palavras





Envio-te
 mensagens telepáticas que repito sete vezes seguidas. 
Há palavras gastas que não escrevo nem digo há tanto tempo, 
como: Amo-te muito. Meu amor, que saudades, vem depressa. 
E outras ainda mais gastas que digo todos os dias,
 como : Foda-se esta merda 






 Inês Lourenço

sexta-feira, 26 de maio de 2023

fogo posto



 

Se eu não tivesse conhecido 
o fogo, não me importava 
de deitar agora a cabeça
 na rocha fria. Mas eu conheci
 o fogo, monstro que dilata 
veias e ergue espigões no ar,
 e como conheci o fogo,
 revolta-me olhar a cinza
 que se faz à minha volta. 
Às vezes a cinza é morna, chega
 até a lembrar que foi fogo. 







 Helder Moura Pereira
(Foto de Ezgi Polat)

segunda-feira, 22 de maio de 2023

a fingir que não




Desistir do rosto, dos propósitos, das
 palavras. Há sílabas assim.
 Com a vergonha do afecto
 emprestada ao desalinho das mesas. 
Por ali, encenando a imobilidade, 
a rudeza de haver dor. 
 Eu sei que não virás. 
Bebo por ti, sem ti, contra ti, 
com o coração no bengaleiro 
a fingir que não, não faz diferença. 
E o pior é que até faz, 
por muito que ninguém o saiba. 





 Manuel de Freitas

terça-feira, 16 de maio de 2023

deixar de escrever




Será sensato
 descobrir o momento
 em que se deve 
deixar de escrever
 e apenas
 passar a limpo ? 






 José Alberto Oliveira

quinta-feira, 11 de maio de 2023

respirar fundo



 

Não sei a cor dos teus olhos, o som da tua voz, o toque da tua pele. 
 Não conheço a tua idade, o lugar onde vives, de que te alimentas. 
 Não posso adivinhar quem amas ou amaste, se sofres de alguma irrecuperável doença, 
 quais as paisagens que preferes, que música ouves. 
Sei que espero todos os dias uma ou duas frases que me permitam
continuar a respirar neste mundo.







 Pedro Paixão

quarta-feira, 3 de maio de 2023

conto de fadas



 

Era uma vez e muitas vezes
Um homem que amava uma mulher 
Era uma vez muitas vezes 
Uma mulher que amava um homem 
Era uma vez muitas vezes 
Uma mulher e um homem 
Que não amavam aquele e aquela que os amava. 
 
Era uma vez 
 Talvez uma vez apenas 
Uma mulher e um homem que se amavam. 






 Robert Desnos

quinta-feira, 20 de abril de 2023

o resto



 

Fica e é só o que fica: o primeiro encontro
 o primeiro beijo numa gare deserta
 o mar por líquida ou aérea testemunha

 depois a longa gestação do adeus
 único e verdadeiro adeus
 o subtil envenenamento da memória 







 Rui Caeiro

sábado, 15 de abril de 2023

o amante





Posso ter inventado tudo, menos o fulgor perfeito
 dos nossos corpos juntos. 
Uma vida inteira não basta para apagar da pele
 o peso magnifico desse fulgor 
Só sexo, disseram- me as amigas intimas,
 quando eu chorava com elas a saudade do êxtase.
 Só sexo, fogo e palha,talvez tenham razão. 
Mas é disso que trata a vida, a minha vida: Só sexo. 
Contigo. 





 Inês Pedrosa

sexta-feira, 14 de abril de 2023

não quero saber




Apago todas as mensagens. Menos as tuas. 
Guardo a tua voz em pequenas doses e, 
dia sim dia não, ouço-as todas de seguida. 
Sinto-me demasiado incapaz para falar contigo o que quer que seja. 
Não sei onde estás. 
Não quero saber. 
Tenho medo de saber mais do que sei. 






 Pedro Paixão

terça-feira, 11 de abril de 2023

lorca




( Continuamos juntos a dar voltas ao sol 

 Às vezes ficamos tontos)









 

terça-feira, 4 de abril de 2023

textos secretos





Penso que não sofria com a tua partida. Estava tudo ali como habitualmente, as árvores, as rosas, a sombra móvel da casa sobre o terraço, a hora e a data, e tu, apesar disso, tu estavas ausente. Não pensava que tivesses de regressar. Em volta do parque rolas sobre os telhados gritavam por companhia. E depois eram sete horas da tarde.

Disse para mim que te teria amado. Pensava que já só me restava de ti uma recordação hesitante, mas não; enganava-me, havia ainda estas praias em volta dos olhos, onde beijar e deitar na areia ainda quente, e esse olhar centrado na morte.





 
Marguerite Duras

  

segunda-feira, 3 de abril de 2023

uma mulher



 

No inverno, um animal
 Na primavera uma planta
 No outono – uma ave 
O resto do tempo sou uma mulher 







 Vera Pavlova

quarta-feira, 29 de março de 2023

meu amor, meu amor




Eu esperava por ti, tu não vinhas 
Tardavas 
e eu entardecia






 Ary dos Santos
 (Foto de Laura Makabresku)

domingo, 26 de março de 2023

sobrevivi






 

Os primeiros beijos
 ingénuos, comedidos, cautelosos,
 os corpos indecentemente jovens, 
desastrados como caranguejos, 
a cozinha suja, o pequeno-almoço na cama, 
cigarros, cerveja, pão turco e tulipas turcas. 

 Passaram mil madrugadas, 
o amor jaz na ausência, 
como se o coração perdesse a paciência, 
como se o corpo perdesse a memória, 
as flores secas, as folhas secas, as raízes secas,
  devolveu-me ao mar como se fosse um peixe, 
um peixe ferido, um peixe incapaz de sobreviver, 
pequenos homicídios sem consequências. 

 Sobrevivi, 
sei que me desmereço mas não sou o que pareço, 
agora sou toda janelas, 
da torre a sentinela, do sino a capela, da rua a cadela, 
sou o morro mais alto da favela, 
ainda quero entender o mundo, 
ainda quero conhecer o fundo,
 quero com desespero, 
quero mas não sei o que quero, 
mais feitio que defeito, 
mais feito que derrota, 
mais gaivota que proveito,
 mais ignota que perfeito,
 mais pé-direito que respeito, 
e podem chamar-me pedante,
 mas as pessoas que sabem o que querem 
nunca querem nada de interessante







 Raquel Serejo Martins
(Foto de Monia Merlo)

terça-feira, 21 de março de 2023

a poesia



Foi nessa idade que a poesia me veio buscar 
Não sei de onde veio 
Do inverno, de um rio 
Não sei como nem quando 
Não, não eram vozes 
Não eram palavras 
Nem silêncio 
Mas da rua fui convocado 
Dos galhos da noite
 Abruptamente entre outros
 Entre fogos violentos 
Voltando sozinho
 Lá estava eu sem rosto 
E fui tocado. 






 Pablo Neruda
 (Foto de Nishe)

quinta-feira, 16 de março de 2023

quartos de hotel



 

Dias de inverno
 noites de bares
 ilustres desconhecidos
 músicas que não sabes dançar
 garrafas vazias
 quartos de hotel 
camas impecavelmente feitas 
para corações desfeitos. 






 Raquel Serejo Martins

terça-feira, 14 de março de 2023

faz sentido


Às vezes apetece-me oferecer-te um presente 
Mas nem sempre calha 
E quando calha é quase sempre
 aparentemente insignificante









Jorge Palma

segunda-feira, 13 de março de 2023

pedaços de coisas



 

Às vezes penso que vou encontrar-te na rua mais improvável, 
que nos sentamos diante do rio e 
ficamos a trocar pedaços de coisas subitamente importantes : 
a tua solidão, por exemplo






 Vasco Gato

terça-feira, 7 de março de 2023

a ausência é uma forma do inverno





assim dói uma noite, 
 com esse mesmo inverno de quando tu me faltas, 
com essa mesma neve que me deixou em branco,
 pois de tudo me esqueço 
 se tenho de aprender a recordar-te









Luis Garcia Montero

quarta-feira, 1 de março de 2023

os dias





As minhas palavras exigem silêncio
 e espaços abandonados





Alejandra Pizarnik




terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

guarda-me


A mulher lançou a sua mão
Eu estava na palma da mão
Eu era uma linha que se apagava
Uma linha que ninguém sabia ler.
Eu disse à mulher: Ah, fecha a mão
Para me guardares






Daniel Faria

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

porque me tocas assim ?









parte de mim



 

Sou tão velha que meus amantes já são nomes de ruas 
 Sou tão velha que minhas vontades já estão nuas 
 Sou tão velha que minhas verdades já são as suas. 
 Eu sou do tempo em que se fumava no cinema. 
 Sou tão velha que minha voz agora é boa para ler um poema. 

 Sou livre: 
 Posso fazer o que quiser que ninguém liga. 

 Parte de mim 
 Mora numa foto antiga. 






 Greta Benitez

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

os passos em volta


 

Agora que o tempo sobrepôs em tempo
 a tua ausência à tua presença,
 longe da vista, longe do coração, 
percebo que não sei quanto de ti ainda é teu, 
quanto de ti foi construído por mim, 
deve ser assim que se sente um crente 
que o tempo transformou em ateu, 
sei que sou a tua construção, 
sei que és a minha construção, 
sei-nos guardados como um noivado antigo
 na correspondência trocada que não trocámos, 
sei os teus olhos verdes de cor, 
sei os meus olhos verdes de cor,
 tal pai tal filha, dizia a mãe da teimosia,
 a nossa botânica particular, 
sei de cor a minha ignorância
 e sei o que não consigo dizer, 
por isso me sinto tão perdida,
 por isso leio muita poesia, 
a cada um a sua geografia, a sua genealogia,
 por isso, como o Simic, queria escrever 
um poema que até um cão pudesse entender. 







 Raquel Serejo Martins
 (Foto de Monia Merlo)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

o sal da língua




Escuta, escuta: tenho ainda
 uma coisa a dizer. 
Não é importante, eu sei, não vai 
salvar o mundo, não mudará 
a vida de ninguém - mas quem
 é hoje capaz de salvar o mundo 
ou apenas mudar o sentido
 da vida de alguém?
 Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
 que vem vindo devagar. 
São três, quatro palavras, pouco
 mais. Palavras que te quero confiar,
 para que não se extinga o seu lume, 
o seu lume breve. 
Palavras que muito amei, 
que talvez ame ainda. 
Elas são a casa, o sal da língua.








 Eugénio de Andrade

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

não sei bem em que lugar




O desejo, o aéreo e luminoso
 e magoado desejo latia ainda; 
não sei bem em que lugar
 do corpo em declínio mas latia;
 bastava abrir os olhos para ouvir
 o nasalado ardor da sua voz: 
era a manhã trepando às dunas, 
era o céu de cal onde o sul começa, 
era por fim o mar à porta – o mar, 
o mar, pois só o mar cantava assim.





 Eugénio de Andrade.