terça-feira, 21 de março de 2023

a poesia



Foi nessa idade que a poesia me veio buscar 
Não sei de onde veio 
Do inverno, de um rio 
Não sei como nem quando 
Não, não eram vozes 
Não eram palavras 
Nem silêncio 
Mas da rua fui convocado 
Dos galhos da noite
 Abruptamente entre outros
 Entre fogos violentos 
Voltando sozinho
 Lá estava eu sem rosto 
E fui tocado. 






 Pablo Neruda
 (Foto de Nishe)

quinta-feira, 16 de março de 2023

quartos de hotel



 

Dias de inverno
 noites de bares
 ilustres desconhecidos
 músicas que não sabes dançar
 garrafas vazias
 quartos de hotel 
camas impecavelmente feitas 
para corações desfeitos. 






 Raquel Serejo Martins

terça-feira, 14 de março de 2023

faz sentido


Às vezes apetece-me oferecer-te um presente 
Mas nem sempre calha 
E quando calha é quase sempre
 aparentemente insignificante









Jorge Palma

segunda-feira, 13 de março de 2023

pedaços de coisas



 

Às vezes penso que vou encontrar-te na rua mais improvável, 
que nos sentamos diante do rio e 
ficamos a trocar pedaços de coisas subitamente importantes : 
a tua solidão, por exemplo






 Vasco Gato

terça-feira, 7 de março de 2023

a ausência é uma forma do inverno





assim dói uma noite, 
 com esse mesmo inverno de quando tu me faltas, 
com essa mesma neve que me deixou em branco,
 pois de tudo me esqueço 
 se tenho de aprender a recordar-te









Luis Garcia Montero

quarta-feira, 1 de março de 2023

os dias





As minhas palavras exigem silêncio
 e espaços abandonados





Alejandra Pizarnik




terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

guarda-me


A mulher lançou a sua mão
Eu estava na palma da mão
Eu era uma linha que se apagava
Uma linha que ninguém sabia ler.
Eu disse à mulher: Ah, fecha a mão
Para me guardares






Daniel Faria

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

porque me tocas assim ?









parte de mim



 

Sou tão velha que meus amantes já são nomes de ruas 
 Sou tão velha que minhas vontades já estão nuas 
 Sou tão velha que minhas verdades já são as suas. 
 Eu sou do tempo em que se fumava no cinema. 
 Sou tão velha que minha voz agora é boa para ler um poema. 

 Sou livre: 
 Posso fazer o que quiser que ninguém liga. 

 Parte de mim 
 Mora numa foto antiga. 






 Greta Benitez

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

os passos em volta


 

Agora que o tempo sobrepôs em tempo
 a tua ausência à tua presença,
 longe da vista, longe do coração, 
percebo que não sei quanto de ti ainda é teu, 
quanto de ti foi construído por mim, 
deve ser assim que se sente um crente 
que o tempo transformou em ateu, 
sei que sou a tua construção, 
sei que és a minha construção, 
sei-nos guardados como um noivado antigo
 na correspondência trocada que não trocámos, 
sei os teus olhos verdes de cor, 
sei os meus olhos verdes de cor,
 tal pai tal filha, dizia a mãe da teimosia,
 a nossa botânica particular, 
sei de cor a minha ignorância
 e sei o que não consigo dizer, 
por isso me sinto tão perdida,
 por isso leio muita poesia, 
a cada um a sua geografia, a sua genealogia,
 por isso, como o Simic, queria escrever 
um poema que até um cão pudesse entender. 







 Raquel Serejo Martins
 (Foto de Monia Merlo)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

o sal da língua




Escuta, escuta: tenho ainda
 uma coisa a dizer. 
Não é importante, eu sei, não vai 
salvar o mundo, não mudará 
a vida de ninguém - mas quem
 é hoje capaz de salvar o mundo 
ou apenas mudar o sentido
 da vida de alguém?
 Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
 que vem vindo devagar. 
São três, quatro palavras, pouco
 mais. Palavras que te quero confiar,
 para que não se extinga o seu lume, 
o seu lume breve. 
Palavras que muito amei, 
que talvez ame ainda. 
Elas são a casa, o sal da língua.








 Eugénio de Andrade

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

não sei bem em que lugar




O desejo, o aéreo e luminoso
 e magoado desejo latia ainda; 
não sei bem em que lugar
 do corpo em declínio mas latia;
 bastava abrir os olhos para ouvir
 o nasalado ardor da sua voz: 
era a manhã trepando às dunas, 
era o céu de cal onde o sul começa, 
era por fim o mar à porta – o mar, 
o mar, pois só o mar cantava assim.





 Eugénio de Andrade.