segunda-feira, 23 de outubro de 2017

como poderíamos não nos ter perdido?




Não valia a pena esperar, ninguém viria 
que nos segurasse a cabeça e nos pegasse nas mãos,
 estávamos sós e essa solidão éramos nós;
 e era indiferente sabê-lo ou não,
 ou gritar (ou acreditar), porque ninguém ouvia: 
o grito era a própria indiferença. 
 Presente, apenas presente;
 a memória, presente, 
a esperança, presente.
 E, no entanto, houvera um tempo
 em que tínhamos sido talvez felizes,
 quando não nos dizia respeito a felicidade, 
 e em que tínhamos estado perto 
de alguma coisa maior que nós 
ou do nosso exacto tamanho. 
 Como um animal devorando-se
 por dentro a si mesmo,
 consumira-se, porém,
 o pouco que nos pertencera, os dias e as noites, 
a certeza e o deslumbramento, a cerejeira e a
 palavra “cerejeira” ainda em carne na jovem boca. 
 Nenhuma beleza e nenhuma verdade que nos salvasse, 
nenhuma renúncia que nos prendesse
 ou nos libertasse, nenhuma compaixão que
 nos devolvesse o ser
 ou o mesmo, 
ou fosse a morada de algo inumano como um coração.
 Nenhuns passos ecoavam no grande quarto interior,
 nenhumas pálpebras se abriam, 
como poderíamos não nos ter perdido? 
 Entre 10 elevado a mais infinito
 e 10 elevado a menos infinito, 
uma indistinta presença impalpável na indiferença azul, 
 sós, 
sem ninguém à escuta, 
nem a nossa própria voz. 






 Manuel António Pina
 (Foto de Cristina Coral)

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