quarta-feira, 6 de junho de 2018

a ver se deixa de doer




Demorou dois meses a livrar-se dos livros. 
Dezassete caixotes de cartão, 
um em cada manhã, a caminho do trabalho. 
Abandonava-os no estacionamento. 
Primeiro os livros, depois as estantes,
 prateleira a prateleira, com a decepção de quem 
renuncia a uma fé. 
Deixara de ler. Agora, bastavam-lhe
 alguns minutos no corredor do supermercado. 
Folheava ao acaso, reprimindo a repulsa.
 Tinha deixado de escrever. 
Recusava-se a acrescentar uma palavra que fosse
 à pilha de papel impresso
 que lhe esmagava a carne. Para papel, 
bastava-lhe o do escritório, o peso e a espessura
 do arquivo morto da burocracia.
 Relatório, inventários, estatísticas. 
Com o tempo talvez dos números
 emergisse uma imagem de mundo. 
Alguma coisa em que acreditar. 
Mais tarde, quando lhe ocorria um título,
 dirigia-se à estante, uma prateleira no armário
 da televisão, 
 e não encontrava lá nada.
Voltava para o quarto, mas continuava a senti-los, 
feridos como é possível 
sentir a dor de um membro há muito amputado. 





 Madalena de Castro Campos

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