domingo, 16 de outubro de 2016

um lugar sem história na história da minha vida




Queimar tudo. Alugar uma casa num lugar sem história 
na história da minha vida, um lugar de postais antigos, 
desbotados, e do passado guardar apenas uma urna
 de cinzas, no compartimento por baixo do lava-louças. 
Ver filmes sem mérito, ler livros sem arte, ouvir óperas
 cómicas e inêxitos impopulares e anacrónicos. Tentar, 
sem sucesso, pescar, e ir ao mercado comprar peixe 
miúdo e roupas com defeitos às ciganas. Ser anónimo
 por fora e por dentro, criança que não se conhece
 nem quer conhecer e que procura apenas o início
 e o fim dum carreiro de formigas, revelação suficiente
 para quem ainda não desperdiçou a vida a perscrutar 
 os gloriosos fundos de um oceano de merda. Beber
 pouco. Foder com a moderação que a improbabilidade
 do diálogo impõe. Emular os pioneiros americanos, 
pecadores em busca de recomeço e horizonte, longe 
das catedrais e de si próprios, longe dos quiromantes
 e das sibilas e, sobretudo, da inexorável morte do amor. 






Miguel Martins (Desvão)
(Foto de Natalia Drepina)