Eis a noite da noite onde abro e folheio livros. Esqueço a minha vida toda, ponho-me a cismar sobre aquilo que ainda não sonhei. E aceito como único alimento, o brilho estático das estrelas. Aceito como único presságio a melancolia aérea das açucenas. Aceito como único consolo a desolação imensa dos teus braços. Aceito como único vício aquele cuja pele ainda não toquei. Aceito como única noite a das searas do fundo do mar. Aceito como única fala possível aquela que é susceptível de rasgar pulsos. Aceito como único corpo aquele que não cresceu dos relógios do mundo. Aceito como único sonho aquele espelho onde te reflectes e me encontro, a noite que me devora, aceito esta dor que me consome, esta escrita, este coração, este silêncio cada dia maior e mais perturbador, aceito esta cadeira, este livro, este nome, estes olhos esmagados pela insónia, esta cama vazia, este frio, aceito esta janela, esta música , esta faca, este sussurro, esta ausência, estes cadernos rabiscados que não servem para grande coisa... aceito a inutilidade de viver, de morrer, de estar aqui, de me deslocar, de permanecer imóvel, de esperar, a inutilidade de ouvir, de falar, de escrever, de amar, aceito o abismo, o olhar ferido na penumbra dos quartos , a dor das mãos percorrendo um corpo, aceito este vazio, aceito esta loucura que me assola lentamente, lentamente, aceito ficar louco, inconsciente, indefeso, aceito viver com estas garras cravadas na alma, aceito a tristeza que me ofereces, a pouca água que necessito para a minha sede, aceito nunca mais me lembrar de mim , nunca mais te tocar , aceito não possuir nada, não querer nada, aceito, aceito nunca mais aqui voltar, nunca mais.
Al Berto (Diários)