o mundo de vez em quando é-me indiferente são volumes e espaços que o meu corpo não compreende aleijo-me tenho braços e pernas cheios de nódoas negras arranhões nas mãos hematomas lambo as minhas feridas como dantes se dizia que um cão lambe as suas feridas sei o gosto das crostas do sangue dos coágulos da pele tensa sobre a dor se houvesse deus eu não seria mais do que um animal a passar a língua pelos joelhos a sujidade que se acumula neles porque estão perto da rua do alcatrão da terra dos passeios sabe-me sempre a pó a minha pele e em pó me hei-de tornar ou num rolo de cactos secos no deserto dos filmes que se move pelas ruas vazias até parar contra a parede e um rosto surgir mudo como se o silêncio o abrigasse ou fosse o tecto da casa ou a parede que desce num movimento de braço.
Rui Nunes
(Foto de Natalia Drepina)