quarta-feira, 30 de novembro de 2016




chove mais uma vez 
a infância é um pássaro aceso nos ramos das árvores 
um território de meteoros incendiados
 numa bacia de plástico com água da chuva







 José Carlos Barros

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Diários



Mata su luz un fuego abandonado. 
Sube su canto un pájaro enamorado. 
Tantas criaturas ávidas en mi silencio
 y esta pequeña lluvia que me acompaña 







 Alejandra Pizarnik

quinta-feira, 24 de novembro de 2016





Há quem não deixe restos nenhuns – há quem deixe muitos e mais restos, a peneira do fim é o tecido poroso do princípio____







 Maria Gabriela Llansol

quarta-feira, 23 de novembro de 2016




Dorme cá hoje. Tenho uma almofada a mais
 feita de memory foam das televendas
 onde a curvatura do teu crânio
 já foi adivinhada 

 Praticamos o modo bed and breakfast,
 aceito dinheiro ou cartões
 mas não te dou crédito, 
em troca levo-te o cafe à cama 

 Não estranhes este meu hábito 
de deixar a luz acesa
 para fingir que está alguém em casa 
ou o outro de deixar 
pernas e portas entreabertas
 esperando que o último a sair
 se lembre de as fechar 

 Não espreites o quartinho dos arrumos,
onde guardo a esfregona, 
os homens que corroem 
e o óleo de cedro para os móveis

 O meu chão vai ranger 
quando o privares do teu peso; 
por hoje, torna-te o homem-a-dias 
que vem arejar este quarto alugado 

 Descansa se ouvires sons de ossos
 a estalar durante a noite;
 são só os meus esqueletos
 a dançar vitoriosos no armário 






 Ana Bessa Carvalho

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

casa




sim, já me lembro: a casa e a cama, 
o lugar à mesa, a pequena chama- 

 onde estás agora,sol branco, dilema
 quebrada a promessa, traído o poema?

 giram no vazio destroços, venenos, 
o pouco que sobra do mal que sabemos

 e ainda te sinto, mudado, disperso, 
na pista de dança, na berma de um verso- 

 a noite, o exílio, a aposta perdida, 
bebes mais um copo, dizes que é a vida 









 Rui Pires Cabral





(livros onde até tocar é um prazer)







sábado, 19 de novembro de 2016




Um corpo ao crepúsculo lido pelo vento

 chama-se música
 esta queda no escuro
 rente ao murmúrio 







Eugénio de Andrade
 (Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 15 de novembro de 2016




Fala-me tu do Amor e dessa coisa esquisita que é o tempo com quatro dedos de distância 
 entre o ardor das línguas e a asfixia dos corpos. 







 Al Berto

segunda-feira, 14 de novembro de 2016




Alguém se sentou à mesa. Tinha o teu nome gravado; 
um rosto sem marcas, irreconhecível, 
aguardava a mão capaz de lhe levar coisas à boca. 
Coisas de alimento às coisas do corpo. Como esta mão a bombear-te 
o coração do lado errado do peito. 






 Inês Fonseca Santos

domingo, 13 de novembro de 2016





"Pode ser que, entreabertos 
Meus lábios de leve 
Tremessem por ti"






sábado, 12 de novembro de 2016




vou ali e já não venho, aproveito a distração de todos 
a minha e a dos outros, e vou-me embora 
sob inúmeras atmosferas, 
dizendo um a um os nomes
 que soam a estrangeiro,
 e a nativo só quando os amor os enflora, 
mas nunca o amor tem a pronúncia que se espera. 







 Herberto Helder

terça-feira, 8 de novembro de 2016




Com o tempo, murcharam as palavras que guardava para te dizer
As afiadas sílabas já não rompem os papéis alicerces do coração. 
Desce este silêncio sobre a casa, onde outro silêncio mais antigo já se instalara. 
Com o tempo desfolharam as ilusões, não voltarás aqui. 
Mas se por acaso regressasses de mim nada encontrarias 







 Al Berto

domingo, 6 de novembro de 2016




Era uma vez duas vezes. E como nunca há duas sem três, algum castigo tens guardado para mim. Não sei se me roubarás os livros, se me esconderás os melros, se me negarás os beijos. Alguma coisa destas tu farás. Podes roubar-me os livros. Hei-de recuperá-los, verso a verso, como a aranha que reconstrói a teia, como o pensamento que reconstrói a ideia, como o vento que reconstrói a areia. Podes esconder-me os melros. Saberei cantar. Darei asas à minha esperança para a ver poisar em todos os verdes, brilhar em todos os muros, debicar todos os desejos. Não me negues os beijos. Morrerei de fome. E de sede. E de saudade. Morrerei de te ver e não te ter. Morrerei de não morder a tua boca. Morrerei de não viver. Morrerei. 






 Joaquim Pessoa
 (Foto de Laura Makabresku)

sábado, 5 de novembro de 2016




Não diga que gosta de mim 
não quero que me gostem
 assim, com a mornidão das novelas de televisão
 eu quero é ser adorada
 com a obsessão dos cultos religiosos
quero o desespero dos homens
 o choro, o joelho carcomido no asfalto
 a lágrima 
o escândalo dos amantes na via pública
 eu quero o estrago, não menos  
que o gasto
 eu gosto é da paixão doída
 e doida dos exagerados
 enamorados patológicos 
o brilho no olho do viciado 
o atentado ao pudor
 nem mais nem menos
 que a falta de ar
 que a beira da morte 






 Ana Farrah Baunilha

sexta-feira, 4 de novembro de 2016




De que lado viste chegar
 o outono? Por que janela
 o deixaste entrar? és tu quem
 canta em surdina, ou a luz 
espessa das suas folhas? 
Em que rio te despes para sonhar? 
É comigo que voltas
 a ter quinze anos e corres
 contra o vento até te perderes 
na curva da estrada?
 A quem dás a mão e confias
 um segredo? Diz-me, 
diz-me, para que possa habitar
 um a um os meus dias. 






 Eugénio de Andrade
(Foto de Nishe)

quinta-feira, 3 de novembro de 2016




A noite explode-me nas mãos 
 em lantejoulas vermelhas de vestido
 que a minha solidão usa neste quarto
 - só existo quando olhas para mim 
mas insistes em desarmar-me de olhos vendados.

 Assumimo-nos como carrascos de uma mansidão letal 
e o mundo lá fora prossegue na sua melancolia habitual 
enquanto tu consolas o meu medo com as tuas mãos milenares 

 sabendo que é por esses dedos que a noite se mata
 e a luz da manhã cega um pouco menos. 






 Leonor Castro Nunes e Marcos Foz
 (A Bifurcação dos Ossos)

quarta-feira, 2 de novembro de 2016




quantos corpos, quantas paisagens e 
aromas, quantos gritos, quantos ecos
 quantas solidões 
quantos recuos e avanços, quantas paixões
 terei ainda de atravessar para que o 
caminho se torne claro 
 quantas revisitações da memória serão
 necessárias para que o esquecimento seja
 completo. 







 Al Berto

terça-feira, 1 de novembro de 2016




debruçado num buraco
 vendo o vazio
 ir e vir 







 Paulo Leminski