segunda-feira, 30 de novembro de 2015







"Vesti-me de sombra e senti o silêncio pousar-me no coração"







alguém te segura à beira da derrocada
 e te pergunta saberás se lá no fundo há
 algo que valha a pena? pode ser que sim, 
pode ser que não, ninguém sabe






 Helder Moura Pereira

domingo, 29 de novembro de 2015













Preciso de ti para um poema 
Ofereço-te em troca o meu auto-retrato sincero. Tenho quarenta livros prontos para serem lidos. Tenho uma estratégia infalível para implementar a primavera. Tenho a segurança de um corpo cheio de insónias, pele de galinha, súbitos arrepios, termómetros para novecentas febres, saliva muito devagar, pés descalços, arrebatamentos incomunicáveis, fins de noite numa garrafa de vinho, estilhaços de quatrocentos orgasmos, comoções, paixões flagrantes, primeiros cuidados para jovens suicidas, lâmpadas que se queimaram nas minhas próprias mãos. 






 Vasco Gato

sábado, 28 de novembro de 2015




Não sei o que vos diga. 
Vinha do outro lado do mundo
 e vestia-se com rosas e arame. 
Tinha a poesia no corpo.
 Perante isso – graça
 ou desencanto –
 somos todos meros escriturários. 






 Manuel de Freitas

sexta-feira, 27 de novembro de 2015




Lentamente os dedos aperfeiçoaram a arte 
de pararem sussurrantes sobre o corpo 






 Al Berto

terça-feira, 24 de novembro de 2015




Ninguém me chama

 Escuto o calcanhar do pássaro 
Sobre a flor 
E não respondo 






 Daniel Faria

domingo, 22 de novembro de 2015




Primeiro esqueci o cheiro 
 E ao acordar já não senti o sabor da sua boca 
 Depois o corpo tornou-se memória
 Em vez de impressão 
 Esfumado, perdido, inglório 
 O seu rosto desaparecia
 Ficavam quase nem os contornos 
 E no fim sentia só uma tristeza 
 De promessa feita e não tornada 






 Miguel Soares

quinta-feira, 19 de novembro de 2015




No armário do meu quarto escondo de tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto. 
 É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de longas hastes delicadas. 
 Eu o quis com paixão e o vesti como um rito, meu vestido de amante. 
 Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido. 
 É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada: 
 eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
 De tempo e traça meu vestido me guarda. 






 Adélia Prado

sábado, 14 de novembro de 2015




Isto não é Paris
 Isto não é Paris
 nem são cinco da tarde
 nem chove
 nem há cómicos na rua
 e tampouco nesta esquina
 desta cidade que não é Paris
 há um realejo surpreendido 
 e um pintor boémio
 e uma garrafa de vinho 
 porque às cinco da tarde
 esta cidade não é Paris
 e não existe um amor curioso
 escondido atrás da cortina 
 enquanto Edith Piaf canta
 Les amants de Paris
 Nem a recordação do Sena
 me leva as minhas memórias tristes 
 desta cidade sem noite
 nem espelhos de mel
 e não minto se disser
 que Paul Éluard saiu do meu quarto 
 com asas de melro branco
 pela janela desta cidade
 que não tem pombas nem bêbados alegres
 porque às cinco da tarde
 esta cidade não é Paris.






 Uberto Stabile
 (Foto de Robert Doisneau )

sexta-feira, 13 de novembro de 2015




O teu corpo 
Magoa-me como o mundo magoa deus. 






Sylvia Plath

quinta-feira, 12 de novembro de 2015










Rui Lage                                                                                      

quarta-feira, 11 de novembro de 2015






( quiero ver a qué sabe tu olvido )








Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. 
E então pensei: 
vou-te escrever.





 Vergilio Ferreira
 (Foto de Mariam Sitchinava)

terça-feira, 10 de novembro de 2015




Não invoques a de ontem porque ela já foi embora
 Desde que tu partiste morreu já muitas vezes
 E embora tenha renascido já nunca foi a mesma
 Mais frágil mais ingénua mais tímida umas vezes 
outras vezes mais sábia mais triste mais murcha 
 Mas sempre distinta e outra vez sempre 
 Às vezes conformada mais cheia do meu sangue
 como se tudo fosse novo tudo recém comprado
 água sol e ar e sombra 
 Tão resignada que até sorrio ao espelho que não 
 Tenho frente a mim 
 E outras vezes em guerra tão em guerra
 que o meu tacto é punhal que me agride as veias
 e as flores me ferem e o céu me criva
 e até o meu próprio corpo me danifica
 - Morro e volto a nascer a cada manhã
 a angustiada de ontem hoje não a busques 
 A eufórica de hoje
 talvez esta mesma noite se suicide
 abraçada ao travesseiro






 Josefina Plá
(Foto de Josephine Cardin)

segunda-feira, 9 de novembro de 2015




entre a saliva e os sonhos há sempre
 uma ferida de que não conseguimos 
regressar 






 Alice Vieira
(Foto de Natalia Drepina)

quinta-feira, 5 de novembro de 2015




Nada tão silencioso como o tempo 
no interior do corpo






 Fiama Hasse Pais Brandão
 (Foto de René Groebli)

quarta-feira, 4 de novembro de 2015




Se um dia me pedires, 
juro que te empresto 
o meu coração, tal como 
 guardei na boca o pequeno deus
 que te trazia tão curioso. 
A sério. Deixo-te tocar nele,
 sentir-lhe o peso, atirá-lo 
 contra a parede para depois
 o apanhares e retirares a pele 
de pêssego demasiado maduro. 

 Podes até queimá-lo - 
 com cuidado, por favor - 
 quando estiver mais frio; 
ou enterrar os restos debaixo
 das estrelícias, de propósito 
por saberes que não as suporto. 
Em troca, promete-me apenas 
 que depois me deixas fugir 
para saber como é isso de
 passar o resto da vida desembaraçada 
 finalmente desse peso morto. 






 Inês Dias
 (Foto Christian Schloe)

terça-feira, 3 de novembro de 2015




- Não é correcto tocares assim nas coisas
 - dizia-lhe a mãe. 
- Então, como se toca?
 - Com menos força, agarrando menos. Não te envolvas tanto. 






 Gonçalo M. Tavares

segunda-feira, 2 de novembro de 2015




Os meus dedos já souberam de cor a perfeição. 
 A morte era o menos. 
Só a beleza nos parecia intolerável 
se não a despedaçássemos, 
voz por voz, compasso a compasso, 
numa harmonia mais dócil. Menos urgente 
do que os músculos que ensaiávamos 
todos os dias sem nos tocarmos.
 Agora ouço outras mãos
 a tactear o mesmo mistério e
 é como segredar, pianississimo, 
ao ouvido de alguém demasiado longe, 
quando afinal adormeceste apenas
 dentro de mim, com as garras
 cravadas ao de leve na memória






 Inês Dias
 (Foto de Natalia Drepina)

domingo, 1 de novembro de 2015




Nas ruínas de novembro
 a triste jardinagem dos poemas 
por abrir






 José Miguel Silva