segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Wong Kar-Wai




 Como se perguntasse o teu
 nome, e um eco de mim
 respondesse 
que não existes 

 e me apetecesse morrer 
mesmo assim à tua porta. 

 Como se no banco de trás de um táxi 
não seguisses comigo para a morte, 
nem tivesses no meu colo pousada 
a tua cabeça, 
no teu rosto branco o batom aceso, 
e o azul dos olhos como um espelho
 debruçado sobre a noite 
ou luz de navio perguntando por terra 
mas passando ao largo. 







 Rui Lage

domingo, 28 de fevereiro de 2016




O meu corpo gela à míngua dos teus dedos 






 Maria do Rosário Pedreira
 (Foto de Katia Chausheva)




(uma tarde numa qualquer parede em Barcelona)







sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016




O mundo era estúpido demais
 para a sua inteligência
 - assim pensou e permaneceu calado
 perante si próprio
 pronto para o último acto 

 Cavou um abismo ao fundo da água calculou a distância
 entre o som e a sombra e atirou-se de pé 

Doía-lhe o coração a cair de pedra 






 António Barahona
 (Foto de Laura Makabresku)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016



Sónia Silva


Como dizer-te os caminhos ou a solidão pousada
 no teu corpo adormecido, entregue à luz ocasional
 como um lugar inabitado? Como dizer-te que te levo
 o alimento à boca se te beijo?
 Devolves-me a humidade da terra 
e o teu coração dispara à superfície da pele,
 e as tuas mãos sulcam os abismos como povoados. 
Como dizer-te que entendo a queda como vocação
 para cair? Como explicar-te que to digo habitado
 pela vertigem de olhar-te?
 Dá-me um lugar à chuva, porque eu 
não sei dizer-te sem que morra que existo
 na extensão perceptível da tua respiração. 



(roubo fotos á Sónia que troco por poemas)


 José Rui Teixeira

domingo, 21 de fevereiro de 2016




Como fui esquecer o caminho para fora? 






 Daniel Faria
 (Foto de Ezgi Polat)

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Insónia




Já passa das quatro da manhã e não consigo dormir. A escuridão prolonga-se no meu peito cheio de suor e taquicardia, a noite passa como um flashback imprescindível para compreender o resto do filme. No sonho acordado, correm aquelas imagens condensadas nas pessoas conhecidas, mas que não são elas, são outras disfarçadas de mim, uma florescência. Levanto-me e ligo a televisão. Passeio a insónia pela publicidade aos utensílios de cozinha, aos instrumentos de tortura de perder peso, e talvez memória, com imagens de o antes e o depois, como se fosse possível a mudança anunciada em sonhos cabalísticos ou nos sonhos onde se voa sobre uma montanha, e que nos fazem acordar em grande aflição, a perder o pé. Daqui a pouco tenho de acordar de vez e esquecer-me de mim, meia hora no chuveiro, ensaboar-me três ou quatro vezes, distraído, sem reparar no corpo, na carne, na flacidez do tempo (muita gente pensa que eu sou um anjo alinhado pelo meridiano de Greenwich, com uma flor acorrentada no bolso do colete )






 António Ferra
 (Foto de Anna O)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

A vida a estoirar-me a qualquer momento




Não temos uma arma apontada à cabeça,
dizias-me. Mas era impossível que não visses,
impossível. Eu ao teu lado com aquela dor
 no pescoço, imóvel, cuidadosa, o cano frio
na minha testa, a vida a estoirar-me
a qualquer momento. Era impossível que não visses
o revólver que levava sempre comigo. Por isso dormia
 virada para o outro lado, não era por me dar mais jeito
 aquele lado, era por me dar mais jeito
 não morrer quando nos víamos,
era para dormir contigo só mais esta vez, 
sempre só mais esta vez, 
sempre com o meu amor a virar-se de costas, 
sempre com o teu amor apontado à cabeça






 Filipa Leal
(Foto de Ezgi Polat)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016




quero deixar tudo arrumado quando a loucura vier 
da extremidade aguçada do corpo alado
 e o resto for devassado por um estilhaço de asa 

 então a vida abater-se-á sobre a folha de papel
 onde verso a verso me ilumino e me desgasto 






 Al Berto

sábado, 13 de fevereiro de 2016




Chega-te devagar aos meus domínios;
 que teus dedos tacteiem o espaço
 cegamente, a escuridão que envolve
 meu corpo; que abram um caminho
 e cheguem até mim através do véu 
espesso e taciturno das sombras. 
Salva-me com a luz que há em teus dedos
 ao tocar-me, conjura a desídia,
 acende-me ou abrasa-me no tacto 
esplendoroso e claro de tuas mãos. 
Como a borboleta nocturna,
lançar-me-ei à chama que tu convocas, 
antes queimar-me que estar às escuras. 






 Josefa Parra

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Apesar de hoje ser sexta




que eu preciso de tempo 
 para arranjar o cabelo, para arranjar o coração, 
 para elaborar a lista do que me falta fazer contigo





quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Livro de Reclamações




Tens a porta aberta, alma de cigano 
 aerofagia, silêncios, depressões? 
 protesta a tua insanidade amarga 
 no livro de reclamações
 que ninguém lê, pois se banalizaram os gemidos 
 as folhas soltas, a identificação dos pruridos 
 e das gralhas não revistas por má-fé 






 António Ferra
 (Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Ficou tudo por dizer




Tudo o que ficou por dizer 
porque de repente 
era a hora do comboio 
ou um telefone longínquo tocava
 ou um qualquer acidente aconteceu. 
 Tudo o que ficou por dizer
 porque o pudor calou a voz
 porque um orgulho surdo a interrompeu 
porque as palavras talvez já nem chegassem 
ou era tarde 
e o cansaço aos poucos foi levando a melhor. 
 Tudo o que ficou por dizer
 porque a dor doía em demasia
 e era necessário que as palavras
 fossem capazes de ser claras como o ar
 porque as palavras traem 
como gumes de facas que nos cortam. 
 Tudo o que ficou por dizer
 porque a tristeza apertou tanto a garganta 
que nenhum som saía 
nem o olhar continha 
em desespero
 uma lágrima ainda assim contida.
 Tudo o que ficou por dizer
 porque o tempo urgente 
se esvaía
 e de repente já não estava 
no lugar a quem havia que o dizer
 quem ainda há pouco nos ouvia. 
 Tudo o que ficou por dizer 
e tudo
 o que ficou por dizer 
ou tudo
 sempre
 por dizer. 






 Bernardo Pinto de Almeida  

sábado, 6 de fevereiro de 2016




Satisfaz-me a derrota, porque é um fim e eu estou muito cansado






 Jorge Luís Borges
 (Foto de Slevin Aaron)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016





"pára de chorar
 carrega no batom 
abusa do verniz 
põe os pontos nos Is"






segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Dois bilhetes para um filme de amor que não viste comigo




Lê , são estes os nomes das coisas que
 deixaste – eu, livros, o teu perfume 
espalhado pelo quarto; sonhos pela
 metade e dor em dobro, beijos por
 todo o corpo como cortes profundos 
que nunca vão sarar; e livros, saudade, 
a chave de uma casa que nunca foi a 
nossa, um roupão de flanela azul que
 tenho vestido enquanto faço esta lista: 
 livros, risos que não consigo arrumar, 
e raiva – um vaso de orquídeas que 
amavas tanto sem eu saber porquê e 
que talvez por isso não voltei a regar; e
 livros, a cama desfeita por tantos dias, 
 uma carta sobre a tua almofada e tanto
 desgosto, tanta solidão; e numa gaveta 
dois bilhetes para um filme de amor que
 não viste comigo, e mais livros, e também 
uma camisa desbotada com que durmo
 de noite para estar mais perto de ti; e, por
 todo o lado, livros, tantos livros, tantas
 palavras que nunca me disseste antes da 
carta que escreveste nessa manhã, e eu, 
 eu que ainda acredito que vais voltar, que 
voltas, mesmo que seja só pelos teus livros 






 Maria do Rosário Pedreira
 (Foto de Ezgi Polat)