quinta-feira, 29 de agosto de 2019

agosto amarga



Não tardará a chegar ao fim 
este agosto que te viu passar com a luz
 a teus pés. Somos eternos, dizias. 
Eu pensava antes na danação
 da alma ao faltar-lhe o alimento 
que lhe trazias. Agora a cidade vive
 do peso incomensuravelmente morto
 dos dias sem a tua presença. Deixo 
a mão correr sobre o papel tentando 
captar o eco de uma palavra,
 um sinal de quem em qualquer parte
 cintila, e confia ao vento o segredo 
da nossa tão precária eternidade.







 Eugénio de Andrade

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

marear



Deus fez-nos cheios de buracos na alma
 e o nosso dever é tapá-los todos para navegar. 







 Vergílio Ferreira

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

refrão



A sós teimamos no silêncio 
como se fosse uma música 
capaz de nos demorar
 e impedir o refrão que diz
 que o amor é a coisa mais triste quando se desfaz 






 Marta Chaves

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

terça-feira, 20 de agosto de 2019

fogo posto



Para dizer que a tua porta ardia por fora e ninguém se importava. 
Que certas palavras interrompidas começaram a agitar-se na minha cabeça. 
Meti-me pelo teu fogo dentro, ninguém se importava, e disse tudo até ao fim. 
Nunca tinha dito tudo até ao fim. 






 Vasco Gato

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

flores abertas



Sonia Silva


aquele cadáver que plantaste o ano passado
no teu jardim já começou a despontar?
dará flor este ano?




T.S.Eliot






segunda-feira, 12 de agosto de 2019

malha morta



é segunda faço sopa
 é terça mudo de roupa 
não sei se mudo de pele
 quando à quarta vou com ele 
se à quinta corto as veias
 à sexta estou sem ideias 

 sábado levanto e calo 
domingo acordo e falo, sempre com algum atraso
 é tarde no meu buraco 
faço de conta que esqueço
 aquilo que não mereço 

 sinto-me tal qual 
uma velha canção
 sinto-me tal qual
 um refrão que odiei

 à segunda aperto o laço
 do garrote que a mim faço
 à terça espero que passe
 à quarta uso disfarce 
na quinta ponho um vestido
 à sexta perco o sentido

 a dias me sinto suja
 o que lavo vira negro
 não sei porque continuo 
esta malha em segredo 
faço de conta que esqueço
 aquilo que não conheço

 sinto-me mal qual 
uma velha canção
 sinto-me mal qual refrão que odiei 






 Ana Deus
(Foto de Monia Merlo)

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

ordem de despejo



Deu-me ordem de despejo
 o senhorio do meu coração, 
o que me fornece água e luz,
 diz que gasto muito, 
é um preço caro a pagar, 
e que deixo a casa fechada 
entristecer 
ele quer janelas abertas
 o riso solto das mulheres
 em voo picado 
assustado vaguearei pedindo água
 luz não 
que não quero ver
 não quero saber
 o que vai ele fazer 
com a casa onde me enterrei 
sobre mim deixei crescer uma árvore 






 Ana Paula Inácio

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

la vie en rose



a vontade de uma lâmina que lhe acalme a raiva, abrindo o peito esmagado







 flor
(a faca não corta o fogo)