segunda-feira, 15 de abril de 2024

a memória guardada





No armário do meu quarto escondo de tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto. 
 É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de longas hastes delicadas. 
 Eu o quis com paixão e o vesti como um rito, meu vestido de amante. 
 Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido. 
 É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada: 
 eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
 De tempo e traça meu vestido me guarda. 






 Adélia Prado

quinta-feira, 11 de abril de 2024

sexta-feira, 5 de abril de 2024

é a vida




sim, já me lembro: a casa e a cama, 
o lugar à mesa, a pequena chama 

 - onde estás agora, sol branco, dilema
 quebrada a promessa, traído o poema?

 giram no vazio destroços, venenos, 
o pouco que sobra do mal que sabemos

 e ainda te sinto, mudado, disperso, 
na pista de dança, na berma de um verso 

- a noite, o exílio, a aposta perdida, 
bebes mais um copo, dizes que é a vida 









 Rui Pires Cabral

segunda-feira, 18 de março de 2024

memória futura


Guardo numa gaveta de velhos objectos as tuas palavras, 
até que o bolor do futuro as apague
 - para que só eu saiba o que nunca me disseste.







Nuno Júdice

terça-feira, 12 de março de 2024

se eras tu




Pergunta-me 
  se eras tu 
 quem eu via 
 na infinita dispersão do meu ser 
 se eras tu
 que reunias pedaços do meu poema 
 reconstruindo
 a folha rasgada 
 na minha mão descrente 






 Mia Couto
(Foto de Nishe)

segunda-feira, 4 de março de 2024

promessas




Quando me cansar de voar ou a ferida estiver finalmente visível, 
promete-me que a faca será afiada e silenciosa. 
Que eu não a veja chegar, como se não tivesse passado uma vida
 a pressenti-la nas dobras do lençol, mortalha de tantas noites.
 E antes, dá-me de beber entre as mãos, 
conta-me de céus azuis, sem garras e sem abismos.
 Espera que o meu coração de novo pequenino 
se aninhe no calor das tuas veias  e se torne
  apenas a memória de um sobressalto contra a tua pele





 Inês Dias
 (Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

as tuas cartas




o tojo abundava nas vertentes, 
havia as rochas, os montes amarelos,
 o rumor fundo dos bichos na arcadura
 das chãs.
 entre o meu silêncio e o teu 
cresceu um verso com a tua boca 
perto dos meus sentidos. 
sabíamos que a chuva regressaria
 eventualmente. as tuas cartas 
 ainda as tenho. 






 Rui Pires Cabral

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

falto-me



chego a casa e tenho medo de entrar neste silencio que é a tua falta 

 há muito que a tua falta é somente a minha falta
 iluminada pela tua






 Rui Nunes
 (Foto de Nishe)

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

destroços






Esqueci­-me do teu nome.
 Um nome que se esqueceu é a falta de um nome?
 Um nome é a falta de todos os nomes. 
 Mas um nome que falta, o que é? 








 Rui Nunes

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

essas saudades que vais tendo, são as minhas




Se eu desaparecer hoje 
E falo mesmo do meu corpo aqui tão sentado
 a escrever desde a ponta da língua à légua mais distante
 da minha vida, 
diz que compreendi. 

 Diz que sei que nada está onde é certo estar 
Que o amor súbito é a escada para o entendimento
 e come os espelhos
Diz que fui ar azul sobre campos de secura 
Estrada recta ao infinito, entre oliveiras, 
um acidente ao longe 
Que provei toda a sede quando engoli os homens 
Que queimei alegremente no ácido das palavras
 Que tombei em ricochete para que me vissem 
E que quando me viram me ergui animal 

 Diz que me viste nua, sempre 
Que corri por hospícios de olhos fechados 
 e a boca às avessas 
Que vivi mais ao alto do que em mundo plano
 e fui honesta na minha rente loucura 

 Diz que nunca esqueci a subida a um plátano 
 Que ninguém viveu no meu lugar, nem eu no de ninguém 
Que fui sim, o halo frio que enchi com esta pena pela
 minha ausência 
E que tudo o que disse foi com silêncio 

 Diz que sei, sobretudo, que ardemos juntos como ventosas,
 embora não queiras
 Que o teu corpo me serviu de andar nas pernas asmáticas 
 Que te agradeço ter-te oferecido lírios
 Que me reduziste o nojo da espécie 
Diz que eu, fui eu 

 Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos:
 - quanto em mim fui que não vivi 
quanto em ti é que fui eu? 

 Mas não te preocupes, não desapareço hoje 
Quando me conheceste já eu não existia, 
e tu sabes 
que essas saudades que vais tendo,
 são as minhas. 







 Cláudia R. Sampaio
 (Foto de Anka Zhuravleva)

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

acreditar no silêncio





Trazemos no fundo do casaco
 algumas canções usadas 
— e achamos, por vezes, que 
é para nós que as estrelas brilham,
 entre prédios demolidos e amores também. 
Acabamos, mais cedo ou mais tarde, 
por acreditar no silêncio.
 A felicidade, para outros, continua válida. 
Mas disso, obviamente, nada podemos saber. 





 Manuel de Freitas
 (Foto de Natalia Drepina)

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

um desgosto de amor




Olha, dou-te um desgosto de amor, 
 é muito interessante um desgosto;
 enquanto sofres, não te aborreces. 






Henri Jeanson
 (Foto de Natalia Drepina)