quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

balanço ?



 

(Tudo o que vos posso dizer é que para mim foi um ano tântrico 
do primeiro ao ultimo dia )




Foto de Gerda Taro





segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

a poesia serve para tudo

 


A poesia serve para tudo: substitui a anestesia
 no dentista e não tem efeitos secundários. 
 Em doses muito concentradas (p. ex. Keats + Vallejo)
 pode provocar calafrios na espinal medula,
 estremecimentos, palidez
 e uma sensação de caminhar no vazio. 
 Nesses casos recomenda-se que se deixe uma flor seca entre as folhas 
 assinalando o culpado até que outra alma piedosa
 daqui a cem anos 
 arrisque a pele na aventura. 







 David Turkéltaub
 (Foto de Andrei Tarkovsky)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

também já tive amor



 

 O que não teve gente neste universo tão pródigo? Era arrebatador. Eu via as casas, as ruas, os rostos, os animais que os homens acariciam, esse maravilhoso vagar da terra, e ficava estupefacto, fulminado. Gritava para mim próprio: é um milagre, o milagre! Tão estúpido, tão forte e cheio de poderes! Criava a linguagem; estava continuamente acordado; descobria, diante da matéria interrogada, figurações, modelos, réplicas. Enfim, uma pessoa insuportável.... 
 Escrevi poemas sobre as vozes, as luzes, as metamorfoses, as imagens e equivalências do mundo. E fui por aí fora: filosofia, ciência, estética. Desejava conhecer tudo, abrir os enigmas. Às vezes deixava-me estar sob a chuva a senti-la correr pela cabeça e as mãos, encharcar-me o fato, entrar na carne. Murmurava: é a chuva. Ficava extasiado, louco de dedicação por esta terra feroz e sumptuosa que eu nunca entendia bem. 
Depois tudo foi desaparecendo.... 




Herberto Helder
(Os Passos em Volta)

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

brandy






 


 Encha o copo. Assim, até cima. Obrigado. Sabe que tive infância? Claro, não sou um sentimental. Pensa que disponho assim de desafogos morais, luxos do espírito, remansos culturais burgueses, para entregar-me a libertinagens da emoção? Tive infância, só isso. Ou seja: falta de jeito, indecisão, uma grande ignorância. Olhava para as coisas: eram fundas, enigmáticas, desorientadoras. Tudo estava cheio, porque o meu coração ávido tudo recebia: era um espaço palpitantemente vazio. Agora não, agora estou cheio de pessoas, lugares, acontecimentos, ideias, decisões. E tudo me parece deserto. Não, voltar à infância, isso nunca. Sofre-se. O mundo é grande. E há tanta curiosidade e paixão, tanta ignorância. Doloroso. Espera-se, está-se nas coisas, cegamente imiscuído nelas. Que angustiosa, esta voracidade, esta fusão analfabeta com a instável matéria do mundo! Agora sou inteligente. Existo. Existe o universo. Duas realidades distintas, inimigas, inúteis. Sim, deite mais brandy. Sou bêbado, claro. Que esperava? Que fosse um apóstolo, um assassino, um político, um anjo? Não, sou apenas um bêbado. 





Herberto Helder
(Os Passos em Volta)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

inverno



 

Agora que é de noite todo o dia,
 inverno todo o ano
 e a semana só tem segundas-feiras, 
 onde olhar, onde virar os olhos, 
 que não encontre os olhos da morte? 





 Amalia Bautista

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

no meio



Senta-te no meio das ruínas, 
senta-te com doçura no meio ou à beira das ruínas 





 Antonio Gamoneda

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

rasto



 

O vento apaga o rasto das gaivotas.
 As chuvas apagam o rasto dos passos humanos. 
O sol apaga o rasto do tempo. 
Os contadores de histórias procuram o rasto da memória perdida, do amor e da dor, 
que não se vê, mas não se apaga.








 Eduardo Galeano

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

poesia



 

Qual é a finalidade da poesia?
- A de nos tornar habitável o inabitável, respirável o irrespirável.






 Henri Michaux

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

tenho medo



 

Não entendo, apenas sinto. 
 Tenho medo de um dia entender
 e deixar de sentir.






 Clarice Lispector

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

a faca não corta a flor





E inclina-se a luz até os dias caírem dentro dos dias invisíveis.
 A terra move-se sobre os lados, ensinas-me
 o que não saberei nunca: a água ronda.



( obrigada )


 Herberto Hélder

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

azul



e a minha mão
 desceu o teu rosto 
num movimento
 de coisa que parte
 e tu disseste: 
porque é que as mãos 
dos que amámos
 nos acenam vazias? 
mas não
 na minha mão
 havia uma lágrima enorme
 e azul
 que tu
 já não sabias ver.







 Gil T. Sousa