quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

hei-de dizer que sim



Se alguém me perguntar, hei-de dizer que sim, que foi verdade - que não amei ninguém depois de ti nem o meu corpo procurou nunca mais outro incêndio que não fosse a memória de um instante junto do teu corpo; e que deixei de ler quando partiste por não suportar as palavras maiores longe da tua boca; e que tranquei os livros na despensa e tranquei a despensa, acreditando que, se não me alimentasse, acabaria por sofrer de uma doença menor do que a saudade, mas a que os outros, pelo menos, não chamariam loucura. Se alguém me perguntar, direi que foi assim, e não de outra maneira, como alguns parecem supor - que permiti, bem sei, que outros homens me amassem e me aquecessem a cama, mas em troca lhes dei apenas um nome diferente do que tinham e os vi partir desesperados a meio da noite sem sentir maior dor que a de saber que, afinal, também eles não existiam para além de ti; e que no dia seguinte dava comigo a trautear sem querer essa canção que amavas (como se ela, sim, se tivesse deitado no meu ouvido), mas que a sua melodia, em vez de me alegrar como antes, me escurecia mais a vida. Se alguém me perguntar, nada desmentirei, nem negarei que os frutos todos que me deram a provar na tua ausência me pareceram demasiado azedos ao pé dos que explodiam em sumo nos teus lábios; e que, por isso, nunca mais quis um beijo de ninguém, nem sequer inocente, e não voltei também a aceitar as flores que me traziam por me lembrar que, em mãos assim, tão grandes para o afecto, o seu perfume anunciava invariavelmente a chegada do outono. E contarei por fim, se alguém quiser saber, que o teu silêncio foi de tal densidade, de tal espessura, que não consegui escutar nenhuma das vozes que vieram depois de ti e, pior do que isso, me esqueci com indiferença das mais antigas, pelo que as minhas noites se tornaram uma tão longa e solitária travessia que ainda esta manhã acordei ao lado da tua sombra e respondi baixinho, mesmo sem ninguém me perguntar, que há coisas que uma mala nunca leva.







Maria do Rosário Pedreira

domingo, 23 de janeiro de 2022

a soma dos dias



 

Bato à porta do teu quarto mesmo quando sei que não estás. 
Descobri agora quanto custa aos mendigos,
 não digo a fome, mas não haver ninguém. 






Daniel Faria

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

elis






sobre o meu corpo


Eles voltaram, com o rumor da chuva aquecem as mãos.
Aos lábios de pouca idade volta o sorriso extraviado.
A verdade é que nunca soube o nome dessa flor
que nalguns olhos abre logo de madrugada.
 Agora para saber é tarde.
O que sei é que mesmo no sono
há um rumor que não dorme,
 um jeito da luz pousar, um rasto de lágrima acesa

 É sobre o meu corpo que chove


  



 Eugénio de Andrade

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

a invenção do amor



Em letras enormes do tamanho
 do medo da solidão da angústia
 um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
 se encontraram num bar de hotel
 numa tarde de chuva
 entre zunidos de conversa 
e inventaram o amor com carácter de urgência
 deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana 

 Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
 e fome de ternura 
e souberam entender-se sem palavras inúteis 







 Daniel Filipe

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

só para te dizer




Corri para o telefone mas não me lembrava do teu número
queria apenas ouvir a tua voz
contar-te o sonho que tive ontem e me aterrorizou
queria dizer-te por que parto
por que amo
ouvir-te perguntar quem fala?
e faltar-me a coragem para responder e desligar
depois caminhei como uma fera enfurecida pela casa
a noite tornou-se patética sem ti
não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr para a rua
procurar-te imediatamente
correr a cidade duma ponta a outra 
só para te dizer boa noite 
ou talvez tocar-te
e morrer





Al Berto

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

lugares


Eu sei, parece-te que perdi o fio à meada, mas não. 
Tive de fazer parágrafo porque a pergunta pedia-me que te olhasse nos olhos
 e sabes que me perco sempre em qualquer dos lugares
 onde guardas a ternura







Sandra Costa

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

quase um poema de amor



Hoje, também os carros dançam. As casas movem-se levemente.
 E eu – que mudei de casa e de roupa, de cidade e de cama, de palavras  
Eu, que mudei de música e de carro, de saudade, de quarto
Eu – que mudei de computador e de rua, de eternidade e de paisagem, de abraço e de clima
 Eu – que mudei de língua e de lágrimas, de deus e de caderno, de crenças e de céu
 Eu – que mudei de lume, que mudei de medos
 Eu – que mudei de planos, de lençóis, de secretária
 Eu – que mudei de óculos e de rumo, de amigos, de champô, de rituais e de supermercado
 Eu – que mudei de tudo que em quase nada mudou, 
mudei de dentro de mim para dentro de ti, meu amor. 





Filipa Leal

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

e escreve-te




Isto sim, é um problema,
 leio-me
 e dou conta
 que todo ele, 
negado, saqueado da minha mente,
 esvaziado do meu sangue, 
instalou-se em silêncio
 no túnel cárpico da minha mão direita. 
E escreve-se. 







 Valeria Pariso
 (Trad. A.M.)