quinta-feira, 27 de outubro de 2022

lentamente



 

Por aqui andamos a morder as palavras
 dia a dia no tédio dos cafés
 por aqui andaremos até quando
 a fabricar tempestades particulares 
a escrever poemas com as unhas à mostra 
e uma faca de gelo nas espáduas 
por aqui continuamos ácidos cortantes
 a rugir quotidianamente até ao limite da respiração
 enquanto os corações se vão enchendo de areia 
lentamente
 lentamente 






 Egito Gonçalves
(Foto de Ezgi Polat)

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

não é um dia para palavras





Hoje é um dia reservado ao veneno 
e às pequeninas coisas
 teias de aranha filigranas de cólera
 restos de pulmão onde corre o marfim
 é um dia perfeitamente para cães
 alguém deu à manivela para nascer o sol 
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
 alguém que não percebia nada de comércio
 lançou no mercado esta ferrugem
 hoje não é a mesma coisa
 que um búzio para ouvir o coração
 não é um dia no seu eixo
 não é para pessoas
 é um dia ao nível do verniz e dos punhais 
e esta noite
 uma cratera para boémios
 não é uma pátria
 não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
 como chumbo derretido na garganta
 um peixe nos ouvidos
 uma zona de lava
 hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
 com sirenes ao crepúsculo
 a trezentos anos do amor a trezentos da morte 
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
 não é um dia para homens
 não é para palavras 






 António José Forte

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

nunca mais nos veremos?





Perguntei com a estupidez
 de quando não há perguntas a fazer







Vergílio Ferreira
 (Foto de Katia Chausheva)

domingo, 16 de outubro de 2022

rigoroso vernáculo



Quero que se foda o sublime. A minuciosa construção do absoluto literário. Assim sem emendas e em rigoroso vernáculo, parece-me mais exacto. Quero que se foda o sublime (desculpem-me a repetição). Prefiro portas fechadas, casas destruídas, chaves de pouco ou nenhum uso para gestos de pouca ou nenhuma glória que são o absoluto onde me posso sentar para beber mais um copo deste vinho que te pinta os lábios e te acende nos olhos esse fulgor de luz, esse pulsar de salto, onde me lanço para voltar ou não voltar, mas ter cumprido do sangue o impulso. Quero que se foda o sublime (começa a saber-me bem repeti-lo, o ritmo sincopado conjugado com a limpidez expressiva). Estou a falar contigo, a viver contigo, a morrer contigo. Estou a dizer-te ama comigo, sofre comigo, morre comigo um pouco mais devagar.





Jorge Roque