quinta-feira, 29 de setembro de 2022

assassinato



 

Quando um homem não nos 
deixa viver, matá-lo é um acto 
de legítima defesa 






 Leopoldo Maria Panero
 (Foto de Natalia Drepina)

terça-feira, 27 de setembro de 2022

dióspiro




depois do almoço 
quando arrastamos a cadeira 
um pouco para trás 
uma sonolência morna 
entrelaçada de luz
 entra pelas janelas
 ludibria as cortinas
 e difusa poisa no vinho

 é nessa altura que dizemos: 
vou comer este dióspiro
 antes que apodreça 






 Daniel Maia-Pinto Rodrigues

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

um dia


E chega um dia em que reconhecemos
 finalmente 
a injustiça das palavras -
 exactamente as mesmas
 para quem vai e para quem fica
 um dia 
em que não há mais passado para contar
 nem mais futuro para viver
 apenas uma velha cantiga a embalar
 uma casa desaparecida 
e este limbo ocasional
 onde o corpo espera que anoiteça




 Alice Vieira

domingo, 18 de setembro de 2022

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

não estou



Ligaste para o três sete quatro um dois um neste
momento não estou em casa peguei na mala nas chaves
do carro vou-me embora por um tempo talvez para sempre
podes falar dizer o que nunca disseste agora que de certeza
não vou escutar diante de teus lábios tem o telefone
a solidão o silêncio todo o silêncio do mundo podes fazê-lo
depois de soar o sinal obrigado


 
Pablo García Casado

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

o que vai ficando





Sim, todos somos arremedos de pessoas que quase nunca chegámos a conhecer, de gente que não se aproximou ou passou ao largo na vida daqueles que amamos agora, ou que então se deteve mas se cansou passado um tempo e desapareceu sem deixar rasto ou só a poeirada dos pés que vão fugindo, ou que morreu para aquele que amamos causando-lhe uma ferida mortal que quase sempre acaba por fechar. Não podemos pretender ser os primeiros, ou os preferidos, somos apenas o que está disponível, os restos, as sobras, os sobreviventes, o que vai ficando, os saldos, e é com esse pouco nobre que se edificam os maiores amores e se fundam as melhores famílias, é essa a proveniência de nós todos, produto que somos da casualidade e do conformismo, dos descartes e das timidezes e dos fracassos alheios, e ainda assim daríamos às vezes fosse o que fosse para continuarmos juntos de quem resgatámos um dia de um sótão ou de um leilão, ou que nos coube em sorte num jogo de cartas ou apanhámos nos desperdícios




 
Javier Marías (Os Enamoramentos)

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

como se o coração perdesse a paciência


 

Finge o amor com amabilidade,
 às vezes por compaixão, 
em regra pela recompensa, 
o seu corpo precisa de outros corpos, 
novos, velhos, magros, gordos, louros, 
todos os corpos iguais 
como uma ervilha igual a outra ervilha, 
nunca uma maravilha, um espanto, 
mesmo se na lapela um cravo ou um crisântemo, 
a sua fraqueza por flores e dos outros as dores, 
tão iguais como uma ervilha igual a outra ervilha. 





 Raquel Serejo Martins
(Foto de Anna O)

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

vou-me embora





Conto até cem e, se não chegares antes dos cem, vou-me embora. Não chegaste antes dos cem. Conto de cem a um e, se não chegares antes do um, vou-me embora. Não chegaste antes do um. Conto dez automóveis pretos e, se não chegares antes dos dez automóveis pretos, vou-me embora. Não chegaste antes dos dez automóveis pretos. Nem antes dos quinze taxis vazios. Nem antes dos sete homens carecas. Nem antes das nove mulheres loiras. Nem antes das quatro ambulâncias. Nem sequer antes dos três corcundas e, entretanto, começou a chover.






António Lobo Antunes