quarta-feira, 26 de abril de 2017

manual de fuga




Resta-me o abandono passivo a uma íntima ternura, à sua obscura beleza,
 para lá de tudo o que é belo e que me humedece o olhar.
 Como quem ama ainda uma mulher e lhe não pode tocar. 
Como quem envelhece e entende a vida apenas na sua longa melancolia.









Vergílio Ferreira

segunda-feira, 24 de abril de 2017




O poema é ver 
com lanternas
 que cor é a cor 
do escuro. 







 Eucanaã Ferraz

domingo, 23 de abril de 2017

hoje acordaste de uma forma diferente dos outros dias






"e de repente descobres é a hora de olhares para dentro

porque há qualquer coisa que não bate certo
qualquer coisa que deixaste para trás em aberto"








sexta-feira, 21 de abril de 2017

palavra por palavra




Nestas tardes de meia-idade e muita fábula
 a mentira é um jogo 
 e a calma
 uma segunda natureza em andamento. 
 Devemos pois pisar o escorpião
 que nos invade
 a sala com a voz aclimatada 
 às suas venenosas pinças telefónicas. 
 E em sossego destruir pena por pena 
 o pássaro do desejo. 
 E depois o sexo - palavra por palavra 







 Armando Silva Carvalho
 (Foto de Ezgi Polat)

quinta-feira, 20 de abril de 2017




apetece-me palavras 
para entreter a boca enquanto 
não as espanta o grito que
 já espreita debaixo da língua 







 Bénédict Houart
 (Foto de Nishe)

segunda-feira, 17 de abril de 2017

(soubesse eu desenhar corações)















Por vezes a memória reacende paixões.
 É o tempo de viver noutro corpo reduzido à breve nudez
 de um verso. Um verso que seja é suficiente para adiar a morte. 








 Al Berto
 (Foto de Ralph Gibson)

domingo, 16 de abril de 2017




era a manhã trepando às dunas, 
 era o céu de cal onde o sul começa, 
 era por fim o mar à porta – o mar, 
 o mar, pois só o mar cantava assim.






 Eugénio de Andrade
 (Foto Cacela Velha)

quinta-feira, 13 de abril de 2017




Deixo-vos as maçãs verdes sobre a mesa. 
Com o tempo, tudo há-de amadurecer. 






José Agostinho Baptista

quarta-feira, 12 de abril de 2017

adiante




No quarto, nem sequer de hóspedes, no quarto 
escuro das arrumações, fui dar com a minha
 vida, e em que lindo estado. No meio de uma
inqualificável tralha, lá estava ela, ao fundo,
 a minha vida, «encore bien que je te trouve!», 
inqualificável tralha, lá estava ela, ao fundo,tão anémica 
que metia dó. Que situação tão constrangedora, 
pensei, sem lho dar a entender. Que posso
 eu fazer por ti que seja não fugir depressa 
daqui ou enfiar-me logo pelo chão abaixo?
 E tu, minha vida, vá, deixa-te ficar, «tant mal 
que bien», e olha que o quarto também não é tão 
mau assim. E desacompanhada não ficas nunca 
(seria aliás difícil, com toda a tralha em volta...) 
e olha que nestas coisas é como no demais, é como
 em certos casamentos: NÃO DEU NÃO DEU, adiante. 






 Rui Caeiro

terça-feira, 11 de abril de 2017




Quantas vezes estendi a mão e nela guardei a tua ausência?






 Al Berto
 (Foto de Laura Makabresku)

segunda-feira, 10 de abril de 2017

um desamor




É doloroso por vezes chegar a casa, encostar o corpo, 
fechar as pálpebras e sentir que a cabeça é um quarto vazio, 
um desamor só e ferido, queimadura que chega ao coração






 Joaquim Pessoa

quarta-feira, 5 de abril de 2017

o lado errado da noite




Às vezes apetece-me desejar a mim mesmo boa-noite, 
antes de me virar sobre o meu lado direito,
que é o lado em que sempre penso trazer o coração 






 João Miguel Fernandes Jorge

terça-feira, 4 de abril de 2017




Deixei os restos do nosso amor
 num saco de plástico
 no armário debaixo do lava-loiça, 
não cabiam no caixote do lixo. 
E quando levares o lixo,
 presta atenção,
 não é para caixote azul, verde ou amarelo,
 é para o cinzento, lixo doméstico comum, 
indiferenciado, o nosso amor acabado, 
e o carro passa às segundas, quartas e sextas. 






 Raquel Serejo Martins