sábado, 30 de novembro de 2013

4 da manhã

 
 
 
 

Porque hoje é sabado


O mundo é uma casa de passe
Com as paredes salpicadas de geleia de framboesa
O mundo é um matadouro disfarçado
Com as paredes forradas de cetim




Adília Lopes
(Foto de Katia Chausheva)

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Eu direi o teu nome


todos os monstros têm o teu nome, de mais ou menos bocas, grandes ou pequenas milhares de patas, sangue jorrando ou líquenes desfeitos, todos os monstros têm o teu nome e por ofício perseguem-me, entram por mim no soalheiro mundo dos homens, usam a minha incúria eu sou uma esplendorosa borboleta de sangue. um ser que voa no coração e cada monstro virá dizer que me ama e saberá convencer-me a suportar os seus tentáculos, a apreciar até os beijos nos orificios mucosos por onde expele a língua e será capaz de me fazer querer o esbracejar nocturno dos seus gestos e eu direi o teu nome e nunca me enganarei











valter hugo mãe

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Prémio


Vales, ravinas, desertos,
e fins de semana, livros a mais,
amigos a menos, noites
de fumo, de corpos alheios,
de novo ravinas, desertos
e vales - eu nunca pensei
que fosse tão longe e que fosse
tão pouco a felicidade:
ovos mexidos, arroz de tomate,
o ir a correr quando o filme começa,
o vem para a cama, um sopro
de mel, e novas legendas no álbum
de fotos - eu nunca pensei
que fosse tão alto este único prémio
de consolação.




José Miguel Silva

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Apesar de tudo


Como lobos em períodos de seca
crescemos por toda a parte
amámos a chuva
amámos o outono
um dia até pensámos
em enviar uma carta de agradecimento ao céu
com uma folha de outono como selo de correio
acreditávamos que as montanhas desapareceriam
os mares se dissipariam
apenas o amor seria eterno
 
de súbito separámo-nos
 
ela gostava de sofás compridos
e eu de longos navios
ela gostava de sussurrar e suspirar nos cafés
eu gostava de saltar e gritar nas ruas
e, apesar de tudo,
os meus braços vastos como o universo
estão à espera dela.




Muhammad Al-Maghut

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

NÃO

 

 
 
"Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe."
Perfeitamente.
Sempre cumpri o que assinei.
Portanto, estrangulei-a e fui-me embora.


 
Mário-Henrique Leiria

domingo, 24 de novembro de 2013

Devias estar aqui rente aos meus lábios


para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um
 



Eugénio de Andrade

sábado, 23 de novembro de 2013

Profecia


Abriu-se a porta e o tempo saiu vestido de branco -
- todas as noites uma estrela caminhará,
alguma há-de acertar com a rota já esquecida.
 
Mas os homens, se isto virem, julgarão que o mundo acaba.
 



Jorge de Sena

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

As mãos


Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.




Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 16 de novembro de 2013

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Noite dentro


Tão impossível a noite que não vinha contigo
nem chegava por ti. Tão impossível,
e tão lentos
os seus dedos de faca arranhando as minhas costas,
destroçando as minhas costas,
que não soube mais noite para além da luz dos teus dedos.
 



Ángel Mendoza

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O corpo atento


A tarde avança em lençóis de fumo
  e tu não bates à minha porta.
Enrolo um cigarro de lume para acabar com a dor.
Tenho os ouvidos lá fora e o corpo atento
O meu coração é um bandido sem navio nem marés
Perdidos os mastros não sabe gritar.
Por isso sou apenas um retrato
Sem perfil nem disfarce.
A tarde é uma égua e a tua demora uma navalha.




Isabel Mendes Ferreira

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Como quem se despe


Risquei o último fósforo
e estou agora vazia,
não esperando sequer
o deserto. Posso de novo
sublinhar os livros
sem pensar noutros olhos,
numa vontade que não coincida;
como quem se despe
de portas abertas, luzes acesas,
buracos na roupa,
indiferente ao desejo
de vizinhos e espelhos.
 
Sou finalmente o único fantasma
da minha vida inteira.




Inês Dias

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Geografia íntima


perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade de meu próprio corpo




Al Berto

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

E outros erros


era uma noite branca com um rio
dentro, ali afundámos os dias
contados, as roseiras do jardim,
duas ou três horas felizes
e outros erros.
 
trocávamos tudo por um sopro de outono.




Renata Correia Botelho

domingo, 10 de novembro de 2013

Dia par

 
 
 
 
 

Nada a fazer


Envelheces tanto de cada vez que o dia termina
e olhas para trás. Tens medo do começo do fim,
das tardes de domingo; um dia, distraído, tens medo
do sexo, da amabilidade e da noite, e dos rostos
que foram belos – e não são mais. Envelheces muito
quando o mundo contraria as pequenas coisas,
sentes esse cansaço, nada a fazer.




Francisco José Viegas

sábado, 9 de novembro de 2013

Silêncio:


Encontrámos na encosta
Flores ainda sem nome





José Tolentino Mendonça  (A papoila e o monge)

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

E não ter nada


Passámos tanta vez naquela estrada
talvez a curva onde se ilude o mundo.
O amor é ser-se dono e não ter nada.
  Mas pede tudo.
 



Natalia Correia

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Frio


que helada esta casa !
sera que esta cerca el rio
o es que estamos en invierno
y estan llegando,
estan llegando...
los frios.




Patxi Andión

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Uma palavra


Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula. Ignorada.
Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.
Do fundo do tempo,
martelava.
Contra o muro.
Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.




Eugénio de Andrade

domingo, 3 de novembro de 2013

Sabes ?


adormecemos juntos acordamos
apartados
disputamos os lençóis como quem
puxa a razão para si
a quantos beijos estamos hoje de distância?




João Luís Barreto Guimarães