segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

os passos em volta


 

Agora que o tempo sobrepôs em tempo
 a tua ausência à tua presença,
 longe da vista, longe do coração, 
percebo que não sei quanto de ti ainda é teu, 
quanto de ti foi construído por mim, 
deve ser assim que se sente um crente 
que o tempo transformou em ateu, 
sei que sou a tua construção, 
sei que és a minha construção, 
sei-nos guardados como um noivado antigo
 na correspondência trocada que não trocámos, 
sei os teus olhos verdes de cor, 
sei os meus olhos verdes de cor,
 tal pai tal filha, dizia a mãe da teimosia,
 a nossa botânica particular, 
sei de cor a minha ignorância
 e sei o que não consigo dizer, 
por isso me sinto tão perdida,
 por isso leio muita poesia, 
a cada um a sua geografia, a sua genealogia,
 por isso, como o Simic, queria escrever 
um poema que até um cão pudesse entender. 







 Raquel Serejo Martins
 (Foto de Monia Merlo)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

o sal da língua




Escuta, escuta: tenho ainda
 uma coisa a dizer. 
Não é importante, eu sei, não vai 
salvar o mundo, não mudará 
a vida de ninguém - mas quem
 é hoje capaz de salvar o mundo 
ou apenas mudar o sentido
 da vida de alguém?
 Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
 que vem vindo devagar. 
São três, quatro palavras, pouco
 mais. Palavras que te quero confiar,
 para que não se extinga o seu lume, 
o seu lume breve. 
Palavras que muito amei, 
que talvez ame ainda. 
Elas são a casa, o sal da língua.








 Eugénio de Andrade

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

não sei bem em que lugar




O desejo, o aéreo e luminoso
 e magoado desejo latia ainda; 
não sei bem em que lugar
 do corpo em declínio mas latia;
 bastava abrir os olhos para ouvir
 o nasalado ardor da sua voz: 
era a manhã trepando às dunas, 
era o céu de cal onde o sul começa, 
era por fim o mar à porta – o mar, 
o mar, pois só o mar cantava assim.





 Eugénio de Andrade.