domingo, 30 de dezembro de 2018

onde tudo já se perdeu



só muito tarde percebi que
 o nosso amor era apenas um
 inquilino temporário da nossa pele 
roubado sabe-se lá a quem 
até ao dia em que disseste       tenho pressa 







 Alice Vieira

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

boas festas



(Tá tudo aceso em mim 
Tá tudo assim tão claro
 Tá tudo brilhando em mim

 Tá tudo assim queimando em mim 
Como salva de fogos
 Desde que sim eu vim 
Morar nos seus olhos)







terça-feira, 18 de dezembro de 2018

dezembro



Quem me acode
 à cabeça e ao coração
 neste fim de ano, 
entre alegria e dor? 

 Que sonho, 
que mistério, 
que oração? 

 Amor. 






 Carlos Drummond de Andrade
 (Foto de Nishe)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

nada


Que aconteceu, voltas a perguntar-me. 
 Nada, volto a responder-te. A resposta que tenho já te havia dado. 
 O resto, que me perdi das palavras nestes últimos dias, 
 que me perdi de mim e não sei por que passos poderei regressar,
 como explicar-te? 






 Jorge Roque

sábado, 8 de dezembro de 2018

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

é ali




— Vais. 
Mas espera-te o mesmo. De vez em quando, abre-se uma nesga na indiferença do mundo e um freixo torna-se claro, 
uma sebe, uma ponte, um muro, a pena de uma rola, os lábios, uma palavra. Deus. É ali. E eu vou. 
Olhos abertos para a desolação de uma casa no meio de um ermo, de um vento cor de barro. De uma voz. 
E não se abria uma porta, nem se dava um passo. Só a voz tinha princípio e fim. É ali. O braço esticado à minha frente. 
E o dedo indicador, cheio de nódulos, a apontar. 
E os meus olhos. 
Que se lembram.
 Lembram-se de ver







 Rui Nunes
 (Foto de Mariam Sitchinava)

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

só se for o coração



Olhe, preciso de dinheiro. 
Preciso de muito dinheiro. Quero abrir um negócio. 
Algo meu, sabe como é. Estou farto de patrões. 
Não posso passar a minha vida atrás de um balcão.
 A levar todas as noites com a baba dos perdidos nas trombas. 
Já não tenho paciência. 
Com esta idade, já viu o que é. 
Sujeitar-se a todos os labregos. 
Já tentei noutros bancos, sim.
 Pedi também aos meus pais, é verdade; 
disse-lhes que era para me casar. 
Não, não tenho casa, nem automóvel. 
Mas, olhe, posso garantir com o meu corpo. 
O meu fígado, senhor, tem que ver o meu fígado. 
É fígado de motard. Isto parece encolhido e tal, 
mas anda a mil. 
E adiantado, não pode pagar nada como entrada?
 Entrada, não sei. 
Só se for o coração. 





 Golgona Anghel

domingo, 25 de novembro de 2018

estar em casa



Ler, escrever, ouvir música, andar a pé, brincar 






Adília Lopes
 (Foto de Nishe)

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

terça-feira, 20 de novembro de 2018

eu tenho tantas flores no coração



Não há ninguém, 
não há ninguém que venda 
flores 
nesta estrada maldita?

 E este mar negro 
e este céu lívido
 e este vento adverso - 
oh, as camélias de ontem
 as camélias vermelhas risonhas 
no claustro de ouro - 
oh, a ilusão primaveril! 

 Quem me vende hoje uma flor?
 Eu tenho tantas no coração: 
mas presas 
em ramos pesados - 
mas espezinhadas -
 mas murchas. 
Tenho tantas que a alma 
sufoca e quase morre 
sob o enorme amontoado
 por oferecer. 
Mas no fundo do negro mar está a chave do coração - 
no fundo do negro coração 
pesará
 até ao anoitecer 
a minha inútil colheita
 prisioneira - 

 Oh, quem me vende
 uma flor - uma outra flor
 nascida fora de mim 
num jardim verdadeiro
 que eu possa dar a quem me espera? 

 Não há ninguém,
 não há ninguém que venda
 flores
 neste triste caminho? 







 Antonia Pozzi
 (Trad. Inês Dias, Foto Anna O)

sábado, 17 de novembro de 2018

amar



Não é de amor que careço. 
 Sofro apenas 
 da memória de ter sido amado. 

 O que mais me dói,
 porém,
 é a condenação 
 de um verbo sem futuro. 
AMAR






 Mia Couto
 (Foto de Nishe)

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

De que outra maneira poderei assim te percorrer até à perdição?




(Só me faltavas tu para me faltar tudo,
 as palavras e o silêncio, sobretudo este) 






 Manuel António Pina
 (Foto de Nishe)

terça-feira, 6 de novembro de 2018

oxímoros para uma ausência



Sonia Silva


Há tanto já explicada a tua 
 ausência tornou-se inexplicável






 Gastão Cruz

sábado, 3 de novembro de 2018

as coisas que cortam



Onde é que pões as coisas todas que lês?
 - perguntas-me após o aguaceiro 
enquanto o céu se acende com relâmpagos
 tardios. Azul cobalto com cinza. Eu estou sentado
 à hindu e espreito lá do divã. Onde é que as ponho? 
Umas acabam nos escombros 
vem o camião na última sexta de cada mês
 e leva os tapetes falsos 
os cadeirões rachados, os brinquedos coxos. 
Umas prendem-se nos fios, outras 
leva-as o vento e enterra-as na areia.
 Ficam as coisas que não deixam em paz
 as coisas que cortam, que magoam
 as que escavam galerias
 as coisas que gorjeiam e reluzem
 as coisas vivas
 as coisas. 







 Alberto Nessi
(Foto de Nishe)

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

o amor é uma noite a que se chega só



(As palavras são as mesmas
 mas deixei de saber o tempo 
para chegar a ti) 





 José Tolentino Mendonça

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

abandono



sem o teu abandono a terra não seria furtiva, mas um nome completo, sólida como um bater de pés, sem o teu abandono eu não saberia que um abandono corre para trás até à morte, e recomeça todas as noites, todas as manhãs, sem o teu abandono eu não saberia de que abandono falar, com o teu abandono, o abandono é olhar em volta e dizer: isto é um livro, é azul o título deste livro, é de manhã, o campo de jogos está vazio, o círculo de um espelho na fotografia de Nozolino, um prego na parede, a sombra de um pardal a passar no soalho 






 Rui Nunes
 (Foto de Paulo Nozolino)

sábado, 20 de outubro de 2018

as cicatrizes do coração permanecem



A esta hora
 na infância neva, 
 e alguém me leva
 pela mão. 
 Quem me trouxe de tão
 longe senta-se agora
 à minha cabeceira
 pegando-me na mão. 
 Senhor, que ao menos 
 a infância permaneça, 
 o espírito da neve 
 desfolhando-se no chão! 
 O médico disse que 
 as cicatrizes 
 do coração
 permanecem.







 Manuel António Pina
 (Foto de Nishe)

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

a condição



Podes até chegar ao ponto extremo
 da crueldade, do ódio ou desprezo
 Podes envenenar de indiferença
 esta pele sempre espera de carícias 
Podes ir para o Japão ou qualquer lado
 desde que me escrevas todos os anos
 Permito-te qualquer deslize absurdo, 
as humilhações,doenças, manias, 
gostares das raparigas do anúncio
 de meias, ou quereres ser meu amante 
quando já não sentes amor por mim 
Eu iria suportar tudo, excepto 
a ingratidão que vem do esquecimento 






 Amalia Bautista

terça-feira, 16 de outubro de 2018

desassossego



A noite é um telefone público. 
 Uma voz que não atende. 
Um corpo que se agita no desassossego do meu






 Al Berto

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

pergunto



__________alguém sem ter perdido ninguém,
 pode ficar confrontado com a ausência de uma pessoa 
 que lhe queria dizer muito? 






 Maria Gabriela Llansol

terça-feira, 9 de outubro de 2018

melancolia



Houve caminhos fora do quarto
 traçados fora da cama, houve 

 Os principais, porém, foram percorridos
 no teu corpo, laboriosamente 






 Rui Caeiro

domingo, 23 de setembro de 2018

álibi



agora fiquei triste, realmente, 
emudeci

 o que esta boca sente
 quando sorri! 

 o jardim está sem gente
 e anda um vago sonho por aí 

 quando voltar a minha força ausente
 hei-de pensar neste álibi 






 Mário Cesariny
(Foto de Nishe)

sábado, 15 de setembro de 2018

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

partir



Era a grande montanha a oriente, a sua liberdade espacial, era o bafo quente de um amor perdido, a flor original de uma alegria morta.
 E então voltei para lá a minha face molhada, e tudo em mim disse adeus longamente. 






 Vergílio Ferreira

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

diário



Toda a vida tive esta sensação:
 quem me dera que houvesse alguém que me pegasse pela mão
 e se ocupasse de mim 






 Etty Hillesum
(Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

agora que te sou realmente alheia



Podes dizer ao mundo inteiro que estas letras são tuas. Assim como os desenhos que fiz, os espaços que deixei. Podes dizer a toda a gente que um dia te amei e que foste tu quem me fez poeta. Podes nadar em orgulho ao saber que todos os copos que bebi foram por ti. Que os cigarros que fumei ansiosa e apressadamente foram pela saudade do teu corpo. 

 Quando falarem de raios e relâmpagos, de trovões e de tufões, vais poder dizer que fui eu quem fez a China, quem ergueu muralhas e deitou as lágrimas de sangue. Quando te perguntarem se um dia me conheceste, diz que sim. Responde um afirmativo de poder e de vontade. Podes deixar o medo do conhecimento alheio, agora que te sou realmente alheia. Quando um dia o mundo se desfizer verdadeiramente em estações trocadas - o Verão pelo Outono ou o Inverno pela Primavera - aí podes descansar. Podes contar à galáxia e aos seus sobreviventes que, meu eterno desconhecido, um dia me fizeste rainha. 







 José Eduardo Agualusa

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

coração desabitado



Estás morto. Eu sei. Mas amo-te. 
 Os meus amigos tentam distrair-me
 com jogos, festas, copos e viagens. 
Os meus pais sugerem-me com doçura
 que podia consultar algum psiquiatra 
de renome. Meu amor, que absurdo tudo isto. 
Só tenho certeza de uma coisa:
 não voltarei mais ao cemitério
 até que o meu telefone toque
 e a tua voz me peça um encontro. 






 Amalia Bautista

sábado, 1 de setembro de 2018

e eu acontecia-te como um acidente



a tua vida coberta contra todos os riscos 
eu sem dinheiro para o arranjo do coração







 Manuel Cardoso

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

nada ficou no lugar



 Eu quero entregar suas mentiras
 Eu vou invadir sua alma 
Queria falar sua língua 
Eu vou publicar os seus segredos


 Eu vou derramar nos seus planos 
O resto da minha alegria 






Adriana Calcanhoto

terça-feira, 28 de agosto de 2018

amargos




Dormíamos nus 
no interior dos frutos

 É o que temos:
 sono e a estiagem subitamente
 até ao fim.

 Amargos.

 Pela humidade descia-se
 às fontes - lembro-me. 
Dos lábios.







 Eugénio de Andrade
 (Foto de Nishe)

terça-feira, 21 de agosto de 2018

.



para um ponto final falta apenas rasgar-te as
 cartas e os enganos







 Isabel Maria Mendes Ferreira

domingo, 19 de agosto de 2018

a idade é isto



Esse que em mim envelhece
 assomou ao espelho
 a tentar mostrar que sou eu. 
 Os outros de mim, 
fingindo desconhecer a imagem, 
deixaram-me a sós, perplexo, 
com meu súbito reflexo. 

 A idade é isto: o peso da luz 
com que nos vemos. 







 Mia Couto

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

braille



Houve uma criança em mim que amava o teu corpo
 e nele se escondia para estar só e ausente.
 E sabia então que a tua luz crua e firme
 calava a ira e ofuscava a discórdia 
que viviam outrora no interior dos quartos. 
Hoje, assim contigo, face a face, fecho as pálpebras 
e apenas com o tacto te sinto e reconheço.







 Fiama Hasse Pais Brandão

domingo, 12 de agosto de 2018

sábado, 11 de agosto de 2018

sábado à tarde



Terraços inúteis, varandas das traseiras, arrecadações, escadas de caracol, marquises desbotadas, antigas estufas, barracas, vasos partidos, paredes abertas, telhas, ferro-velho, andares vazios, degraus sem uso, o fosso do elevador, fechaduras de portões, gatos, cadeiras, um sol sem préstimo, ervas daninhas, um triciclo, humidade, silêncio, azulejos, sábado à tarde e o meu corpo. 







 Pedro Mexia

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

livros de poesia



Não tardará a chegar ao fim
 este agosto que te viu passar 
 com a luz a teus pés. 
 Somos eternos, dizias.
 Eu pensava antes na danação da alma
 ao faltar-lhe o alimento que lhe trazias.
 Agora a cidade
 vive do peso incomensuravelmente morto
 dos dias sem a tua presença. 
 Deixo a mão correr sobre o papel 
 tentanto captar o eco de uma palavra, um sinal, 
 e quem em qualquer parte cintila,
 e confia ao vento o segredo da nossa tão precária eternidade.






 Eugénio de Andrade

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

e não fique de tudo uma palavra



se a maldição for tanta e tão pérfida 
que eu te esqueça na morte, que eu te esqueça








 Fernando Assis Pacheco

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

olha-me como quem chove




Estendo na cama o corpo que há-de
 ser o porto a que esta noite vais chegar. 
 E entre névoas e ventos hei-de ver
 o barco dos teus dedos ancorar
 na margem mais secreta do desejo.
 E há-de haver um mapa ali por perto
 que te leve à enseada do meu beijo 
 e à fogueira de tudo o que está certo. 
 E na respiração da tua boca
 bebo o grito da terra sempre pouca
 para a noite em que ficarmos sós.
 Mas o corpo descansa apaziguado:
 sei que o sol já repousa do meu lado
 e que o teu rio já chegou à foz. 






 Alice Vieira

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

amar morrer



e depois
 amor quase a tristeza 

 e depois amor quase gritaste






 Fernando Assis Pacheco

segunda-feira, 30 de julho de 2018

de noite




Gosto de me deitar
 sem sono
 para ficar 
a lembrar-me
 das coisas boas
 deitada 
dentro da cama
 às escuras
 de olhos fechados
 abraçada a mim





 Adília Lopes

sábado, 28 de julho de 2018

quinta-feira, 26 de julho de 2018

mal



Não há nada que tu faças
 Que te não faça imenso mal,
 Desde o uso das estrelas 
Ao abuso corporal. 
Em volta a ti morre a morte
 Mas tu próprio não ficas inteiro 
Sorris de manhã à noite 
Como a um espelho fatal. 
Cortas a vida aos pedaços 
Para ver se fica igual. 

 Não há nada que tu faças 
Que te não faça imenso mal. 






 Mário Cesariny

terça-feira, 24 de julho de 2018

passo bem sem café



Guardei o recibo, que não serve para nada. 
Dados impessoais: o nosso subtotal foi de 6.35
 — pediste uma água mineral, um café
 e uma sandes de ovo (em que nem tocaste);
 pagámos caro por estarmos ali os dois, 
na cafetaria do aeroporto com uma hora inteira
 só para dizer uma palavra. Tudo
 processado por computador, IVA incluído. 
Uma operação que teve início precisamente
 às 04:55 da madrugada. Agora
 temos muito tempo para nos contentarmos
 por já não termos que disputar as contas, 
tu pagas os teus cafés, e eu sem ti 
passo bem sem café. 






 Diogo Vaz Pinto

domingo, 22 de julho de 2018

fogo posto




Conta-me na pele os meus sinais 
Nas veias quantos segredos
 Conta-me na carne os vendavais
 Que se levantam na ponta dos teus dedos 
Diz em que ser eu me tornei 
Do que sou feito e o que faço
 Conta-me aonde eu regressei 
Quando me contas no teu braço
 Conta-me os cabelos quase cal
 E o líquido cansaço do meu sexo 
Conta-me este amor quase animal
 Para que deus me faça nexo 
Conta-me os meus cinco sentidos
 Que há no teu nome e em mais nenhum
 Conta-me que estando os dois unidos 
Só se pode contar até um.







 João Monge

terça-feira, 17 de julho de 2018