segunda-feira, 30 de abril de 2012

Coisas que nunca


Há coisas que nunca tivemos em crianças e perdem o valor para sempre. Aquele sempre dos primeiros dez anos, onde o tempo, as pessoas, as coisas parecem enormes e indestrutíveis.
Disfarçar-se de relâmpago ou de outras coisas impossíveis, comer todos os chocolates, ter uma bicicleta igual à do estúpido do vizinho, fazer as coisas que os adultos escondem atrás da porta dos quartos, retribuir a bofetada aos nossos legítimos superiores, querer morder com justa causa tanta gente no mundo e só poder no escuro morder uma almofada.


Inês Lourenço

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Vinte cinco


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo










Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 24 de abril de 2012

Sou



          Sou uma mulher madura que às vezes anda de balanço
      Sou uma criança insegura que às vezes usa salto alto
          Sou uma mulher que balança      
Sou uma criança que atura

Martha Medeiros

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Tenho saudades



 De mim em ti.
 Tenho muita saudade de morar dentro dos livros


Joaquim Pessoa

domingo, 22 de abril de 2012

Eu sei


Eu sei que as túlipas são os olhos de todos os aviões perdidos
Eu sei que as cidades são os esqueletos das aves de rapina
Eu sei que os candeeiros ardendo de noite são os pulmões dos peixes-voadores
Eu sei que o mistério é uma dentadura abandonada
Eu sei que a loucura é um braço solitário sorrindo eternamente
Eu sei que os meus olhos são as tuas pernas frementes
Eu sei que os teus cabelos são o meu acendedor de pirilampos
Eu sei que a tua boca é o meu uivo solar
Eu sei que o teu peito e o teu sexo são a minha água profundamente azul
onde se encontram todos os fantasmas já perdidos há séculos.


Mário Henrique Leiria

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Comunicado


Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha.
Até cair.

Miguel Torga

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Conhecimento


Sou eu a única que tem medo de mim
sei que de mim ninguém vai libertar-me.





Ulla Hahn

terça-feira, 17 de abril de 2012

Bom dia


Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca – e sempre a tua boca – comece de novo a nascer na minha boca

Eugénio de Andrade

domingo, 15 de abril de 2012

sábado, 14 de abril de 2012

A mulher e o atirador de facas


Arrancar as vendas e acompanhar, de olhos abertos,
a trajetória do punhal, cravado em nosso corpo,
em nosso peito, a cada amor desfeito.

Leila Miccolis

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Frágil



Frágil
Esta noite estou tão frágil.

Jorge Palma

As três palavras mais estranhas


Quando pronuncio a palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.
Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.
Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser


WISLAWA SZMBORKA

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Percebes ?


Sou um ladrão do teu rosto
e do teu resto.
E quando ninguém me vê
escondo-te no bolso da minha camisa.
Percebes agora
que é por causa disso que as camisas
trazem os bolsos do lado do coração?

Vitor Encarnação

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Senhor, enche o meu quarto de alto mar



Filipa Leal

Perdi


Perdi uma perna, ou um braço.
Ou o tronco na íntegra.
A sensação vazia de um espaço esponjoso que ocupa exponencialmente a
caixa torácica.
Perdi os dedos, as mãos.
O corpo fustigado na guilhotina áspera das palavras. Aquele volume poroso
encurtando-me os alvéolos em nebulosas vítreas.
O corte.
Perdi os olhos e a boca.
Ou o cheiro tenro das primaveras que soletram o rasgo etéreo do Amor no
papel.
Perdi o barco, o comboio, a imensidão das águas e das terras. A vida num
impasse de esperas. Viagens que não conheceram outro feito senão o enfeite
dos meus dedos.

Alice Turvo

terça-feira, 10 de abril de 2012

Anúncio confidencial


Entravam-me no quarto sem bater à porta,
desfolhando no ar a flor do seu perfume.
Ouvia-os arrastar-se, leves, até ao tapete.
Trepavam à cama e depois, entre lençóis,
anunciavam-me o dia com carícias subtis.

Luis Alberto de Cuenca

quarta-feira, 4 de abril de 2012

E eu volte


talvez esmague buganvílias e cerre as pálpebras. talvez encha de
amoras o seio da tarde e finja ser pirata nas tuas mãos. talvez.
- talvez volte de azul ou de noite ou de branco. talvez de abismo
líquido e profundo no retorno das giestas sem flor e dos vales oblíquos.
talvez dos cheiros da montanha a cavalgar a face oculta da lua
e das areias. talvez a respiração ampla e gráfica das tuas mãos nos
meus ombros.
modulação sensível da neve e das fontes. os teus olhos. talvez volte.
talvez venha de aloendro.


Isabel Mendes Ferreira (As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar )

terça-feira, 3 de abril de 2012

Talvez



Sim, dizias tu, mas em seguida
corrigiste: talvez. Esta
é a única palavra
que não tem casa. Que mora
no intervalo
entre o som e o silêncio

Albano Martins

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Segunda feira


Vinte e um. Noite. Segunda-feira.
A silhueta da cidade na neblina.
Algum desocupado inventou
essa história de que há amor no mundo.
E por preguiça ou tédio,
todos acreditaram nele e assim viveram:
esperando encontros, temendo rupturas
e cantando canções de amor.
Mas a outros será revelado o segredo
e sobre estes cairá o silêncio...
Eu tropecei nele casualmente e, desde então,
sinto-me como se estivesse doente.

Anna Akhmatova

domingo, 1 de abril de 2012

Como no poema


A chuva cai na poeira como no poema de Li Bai.
No sul os dias têm olhos grandes e redondos;
no sul o trigo ondula, as suas crinas dançam no vento,
são a bandeira desfraldada da minha embarcação;
no sul a terra cheira a linho branco, a pão na mesa,
o fulvo ardor da luz invade a água, caindo na poeira, leve, acesa,

Como no poema.

Eugénio de Andrade