quarta-feira, 30 de maio de 2012

Erro



Edifiquei minha casa sobre a areia
Todo dia recomeço


Eunice Arruda

sábado, 26 de maio de 2012

Toca-me


Não digas o meu nome.
Toca-me com a doçura do arco
e diz: "tu" ou
"estás aqui".
São palavras voadoras
que nunca falham o alvo.


Rosa Alice Branco

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Essa mulher


Amanhã vou pintar o cabelo, decide. porque no amanhã de certos dias pinta sempre o cabelo ou compra um bâton diferente, mais claro, mais escuro, incolor, pinta os olhos ou ignora-os, usa ou não óculos escuros. há ocasiões em que a encontram, hesitam, será ela?, devem pensar. “meu deus, estás diferente, que te aconteceu, mulher?” apetece-lhe responder que morreu e ressuscitou, que estava na idade dos peixes e houve um cataclismo e se encontra agora na dos lagartos, mas ninguém iria compreender as suas palavras. nem ela própria. porque além da cor do cabelo, ou do lápis com que pintou os olhos, tudo está absolutamente igual.


Maria Judite de Carvalho

quarta-feira, 23 de maio de 2012

A noite


vesti-me de nudez e dei-te o flanco as costas a pele roubei-te o livro onde inventavas memórias trouxe-te suspenso e quando a noite amanheceu nos teus cabelos naveguei-me.com a força do gesto fundo. naufraguei-te. indesejado mel. clandestino e réu


Isabel Mendes Ferreira

terça-feira, 22 de maio de 2012

domingo, 20 de maio de 2012

Tão branco e tão raso


Foi um tempo branco, repetidamente lavado nas próprias mãos
Desviando a transparência do rosto para a noite
Um tempo branco muito diferente da verdade
Muito diferente das estrelas que se apagam
Foi um tempo muito branco
Mais doloroso do que os olhos sempre abertos no escuro
Inimaginável quando pus de fora a cabeça , as mãos
— tendo deposto o que trazia nelas —
O corpo todo
E saí como um paralítico depois do milagre
Na forma de quem grita por socorro
Foi um tempo branco porque era mudo
E não havia nenhuma palavra que pudesse apagá-lo
Um tempo tão manso como um lobo que não morde
Um tempo tão branco
Tão raso
Saí como um coxo que caminha sobre o tempo tão liso
Tão branco
Que pensei que era um muro aquele tempo estar ali
E bati contra ele como uma badalada que demora
  E era branco, um som que nunca ouvi

  Daniel Faria

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Estranha gramática


O corpo tem uma gramática feita de caos e de silêncios. amargos cálices que se partem em parágrafos ora lentos ora curvos agudos e de espólios em parêntesis que se dobram em verbos de vingança e em apelos aos mortos. são nervos e são maiúsculos. são segundos e são sintaxes na densa caligrafia de um xeque-mate à memória do tempo. o corpo é sempre o espelho. o ecrã tamanho de um dedo e uma espada prévia a ser agravo. antes que se feche a concha antecipo-te a pérola. concebido o oposto o convulso escreve-se exclamante em vez de virgula. honra seja feita à poalha dos pretextos. irrefragável. que por menos já se é destino.


Isabel Mendes Ferreira

segunda-feira, 14 de maio de 2012

A Máquina Fotográfica


Moras aonde eu sei.
É na distância onde chego de táxi.
Sou turista
  com trinta e seis hipóteses no rolo;
  venho ao teu miradoiro ver a vista
  trago a minha tristeza a tiracolo.


José Carlos Ary dos Santos

domingo, 13 de maio de 2012

As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar



ampla a vereda onde o sol adormece. para ser febre nas tuas pálpebras


Isabel Mendes Ferreira

sábado, 12 de maio de 2012

Pergunta ao vento


Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?
Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?
Dei o cravo e dei o lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não ?

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 10 de maio de 2012

27 silêncios


tinhas razão, toda a razão, razão antes de tempo, razão tantos anos antes. viste numa fraqueza um desastre, escolheste os adjectivos que se iam tornar substantivos, e disseste que a vida não estava do meu lado. e foi então que me apresentaste a morte, apenas para que eu falasse com alguém enquanto tu viravas costas.







Pedro Mexia

quarta-feira, 9 de maio de 2012

terça-feira, 8 de maio de 2012

A outra


Quem escreve é um visitante
Chega nas horas da noite
e toma o lugar do sono
Chega à mesa do almoço
  come a minha fome
Escreve o que eu nem supunha
Assina o meu nome

Eunice Arruda

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Um nome



A solidão de uma palavra. Uma colina quando a espuma
salta contra o mês de maio escrito.
A mão que o escreve agora.
Até cada coisa mergulhar no seu baptismo
Até que essa palavra se transmude em nome
e pouse, pelo sopro, no centro
de como corres cheio de luz selvagem,
como se levasses uma faixa de água
entre o coração e o umbigo.

Herberto Helder

domingo, 6 de maio de 2012

Mãe


Mãe, eu sei que ainda guardas mil estrelas no colo.
Eu, tantas vezes, ainda acredito que mil estrelas são
todas as estrelas que existem.

José Luís Peixoto

sábado, 5 de maio de 2012

Corpo de abrigo


Estar em algum lugar
sempre
deixar o corpo posto
em algum lugar

porto onde voltar


Eunice Arruda

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Das minhas manhãs


(...)
Vou falar-te das minhas manhãs quando me levanto. Um peso no corpo, uma morte no olhar, corredor estreito por onde os passos avançam em direcção ao copo onde dissolvo a vitamina C em água. Logo o cigarro, a primeira baforada, como se uma esperança, embora uma esperança de nada. Seguir para o banho, copo e cigarro, o espelho em frente, cercado por azulejos brancos macabros. O resto já sabes, não preciso dizê-lo. Somos assim dois, eu e tu.
Guarda segredo.

Jorge Roque

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Quero dizer


Queria falar do mar
  gostava de ter dito algo como isto: - foi o mar que me fez começar a pensar no amor, mais do que noutra coisa; quero dizer, num amor por que valha a pena morrer, num amor que consuma uma pessoa.

Yukio Mishima

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Assim como eu sou


Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
  Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
  É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.


Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

terça-feira, 1 de maio de 2012

Era um corpo


Era um mês incerto, havia vento,
eu não teria nascido ainda, ou já teria morrido.
A fronteira entre luz e sombra era muito difusa.
 Então estranhamente o sol pousou naquele corpo.
Corpo que nunca vira despido, que cheirava a maçãs maduras,
com brilhos que desciam às negras sementes da vida.
Estranhamente o sol demorou-se nos seus ombros.
 Um último brilho, ou suspiro, desprendeu-se.
O ar tremia – apesar disso eu era feliz,
Tinha dez ou mil anos, já não sei.


Eugénio de Andrade