segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

alfabeto dos dias





Aquilo que sobrou de ti
cabe-me nos bolsos
e é pouco para as minhas mãos.
 








Rui Pires Cabral

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

é a minha vez




Estou aqui, 
 agitando os baldes que a chuva 
 encheu durante a madrugada
 para evitar que o silêncio faça mais vítimas. 
 Fui colocar essa peruca de pardais e vim
 a voar até aqui acima, 
 e agora não sei como inventar as escadas para descer. 
 Dizes que é apenas uma questão de tempo,
 que só foste renovar o contrato para não ficares assim com
 o pé no vazio. 

 Já nem reparas, 
 mas estou aqui como um animal pré-histórico 
 a ficar enternecido com a bailarina
 da tua caixa musical.
 Aguardo, ainda, como qualquer vulcão lunar
 o fim da era glaciar. 

 Passo a mão pelos cabelos molhados,
 chove,
 outra vez.
 Há ecos de corpos rasgados 
na gargalhada dos palhaços
 e as hienas começam a ficar impacientes: 
 é tarde mas sobretudo urgente.

 Deixa-me pôr esse vestido 
 com corte jovem demais para o meu corpo em queda.
 É a minha vez. 
 Sei o papel de cor. 
 Mas não chego para uma história. 







 Golgona Anghel

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

ouves?



Ouço, mãe, é outra vez a chuva, 
a chuva sobre o teu rosto








Eugénio de Andrade

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

um jeito da luz pousar



 

Devias estar aqui rente aos meus lábios
 para dividir contigo esta amargura
 dos meus dias partidos
 um a um 





 Eugénio de Andrade

terça-feira, 1 de novembro de 2022

mãe



 

 Deus precisou de ti, bem sei.
E não vejo como censurá-lo

 ou perdoar-lhe







 Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

lentamente



 

Por aqui andamos a morder as palavras
 dia a dia no tédio dos cafés
 por aqui andaremos até quando
 a fabricar tempestades particulares 
a escrever poemas com as unhas à mostra 
e uma faca de gelo nas espáduas 
por aqui continuamos ácidos cortantes
 a rugir quotidianamente até ao limite da respiração
 enquanto os corações se vão enchendo de areia 
lentamente
 lentamente 






 Egito Gonçalves
(Foto de Ezgi Polat)

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

não é um dia para palavras





Hoje é um dia reservado ao veneno 
e às pequeninas coisas
 teias de aranha filigranas de cólera
 restos de pulmão onde corre o marfim
 é um dia perfeitamente para cães
 alguém deu à manivela para nascer o sol 
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
 alguém que não percebia nada de comércio
 lançou no mercado esta ferrugem
 hoje não é a mesma coisa
 que um búzio para ouvir o coração
 não é um dia no seu eixo
 não é para pessoas
 é um dia ao nível do verniz e dos punhais 
e esta noite
 uma cratera para boémios
 não é uma pátria
 não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
 como chumbo derretido na garganta
 um peixe nos ouvidos
 uma zona de lava
 hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
 com sirenes ao crepúsculo
 a trezentos anos do amor a trezentos da morte 
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
 não é um dia para homens
 não é para palavras 






 António José Forte

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

nunca mais nos veremos?





Perguntei com a estupidez
 de quando não há perguntas a fazer







Vergílio Ferreira
 (Foto de Katia Chausheva)

domingo, 16 de outubro de 2022

rigoroso vernáculo



Quero que se foda o sublime. A minuciosa construção do absoluto literário. Assim sem emendas e em rigoroso vernáculo, parece-me mais exacto. Quero que se foda o sublime (desculpem-me a repetição). Prefiro portas fechadas, casas destruídas, chaves de pouco ou nenhum uso para gestos de pouca ou nenhuma glória que são o absoluto onde me posso sentar para beber mais um copo deste vinho que te pinta os lábios e te acende nos olhos esse fulgor de luz, esse pulsar de salto, onde me lanço para voltar ou não voltar, mas ter cumprido do sangue o impulso. Quero que se foda o sublime (começa a saber-me bem repeti-lo, o ritmo sincopado conjugado com a limpidez expressiva). Estou a falar contigo, a viver contigo, a morrer contigo. Estou a dizer-te ama comigo, sofre comigo, morre comigo um pouco mais devagar.





Jorge Roque

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

assassinato



 

Quando um homem não nos 
deixa viver, matá-lo é um acto 
de legítima defesa 






 Leopoldo Maria Panero
 (Foto de Natalia Drepina)

terça-feira, 27 de setembro de 2022

dióspiro




depois do almoço 
quando arrastamos a cadeira 
um pouco para trás 
uma sonolência morna 
entrelaçada de luz
 entra pelas janelas
 ludibria as cortinas
 e difusa poisa no vinho

 é nessa altura que dizemos: 
vou comer este dióspiro
 antes que apodreça 






 Daniel Maia-Pinto Rodrigues

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

um dia


E chega um dia em que reconhecemos
 finalmente 
a injustiça das palavras -
 exactamente as mesmas
 para quem vai e para quem fica
 um dia 
em que não há mais passado para contar
 nem mais futuro para viver
 apenas uma velha cantiga a embalar
 uma casa desaparecida 
e este limbo ocasional
 onde o corpo espera que anoiteça




 Alice Vieira

domingo, 18 de setembro de 2022

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

não estou



Ligaste para o três sete quatro um dois um neste
momento não estou em casa peguei na mala nas chaves
do carro vou-me embora por um tempo talvez para sempre
podes falar dizer o que nunca disseste agora que de certeza
não vou escutar diante de teus lábios tem o telefone
a solidão o silêncio todo o silêncio do mundo podes fazê-lo
depois de soar o sinal obrigado


 
Pablo García Casado

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

o que vai ficando





Sim, todos somos arremedos de pessoas que quase nunca chegámos a conhecer, de gente que não se aproximou ou passou ao largo na vida daqueles que amamos agora, ou que então se deteve mas se cansou passado um tempo e desapareceu sem deixar rasto ou só a poeirada dos pés que vão fugindo, ou que morreu para aquele que amamos causando-lhe uma ferida mortal que quase sempre acaba por fechar. Não podemos pretender ser os primeiros, ou os preferidos, somos apenas o que está disponível, os restos, as sobras, os sobreviventes, o que vai ficando, os saldos, e é com esse pouco nobre que se edificam os maiores amores e se fundam as melhores famílias, é essa a proveniência de nós todos, produto que somos da casualidade e do conformismo, dos descartes e das timidezes e dos fracassos alheios, e ainda assim daríamos às vezes fosse o que fosse para continuarmos juntos de quem resgatámos um dia de um sótão ou de um leilão, ou que nos coube em sorte num jogo de cartas ou apanhámos nos desperdícios




 
Javier Marías (Os Enamoramentos)

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

como se o coração perdesse a paciência


 

Finge o amor com amabilidade,
 às vezes por compaixão, 
em regra pela recompensa, 
o seu corpo precisa de outros corpos, 
novos, velhos, magros, gordos, louros, 
todos os corpos iguais 
como uma ervilha igual a outra ervilha, 
nunca uma maravilha, um espanto, 
mesmo se na lapela um cravo ou um crisântemo, 
a sua fraqueza por flores e dos outros as dores, 
tão iguais como uma ervilha igual a outra ervilha. 





 Raquel Serejo Martins
(Foto de Anna O)

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

vou-me embora





Conto até cem e, se não chegares antes dos cem, vou-me embora. Não chegaste antes dos cem. Conto de cem a um e, se não chegares antes do um, vou-me embora. Não chegaste antes do um. Conto dez automóveis pretos e, se não chegares antes dos dez automóveis pretos, vou-me embora. Não chegaste antes dos dez automóveis pretos. Nem antes dos quinze taxis vazios. Nem antes dos sete homens carecas. Nem antes das nove mulheres loiras. Nem antes das quatro ambulâncias. Nem sequer antes dos três corcundas e, entretanto, começou a chover.






António Lobo Antunes

domingo, 28 de agosto de 2022

esperar



 

Em todas as casas há um canto para esperar. 
O ponteiro dos segundos invade o espaço com a sua música mecânica. É uma tortura a que se dá corda. Há dias em que só há uma maneira de lidar com o tempo: matá-lo! 
A cadeira de baloiço, incorpora no corpo o inevitável pulsar do universo e veste a ansiedade com um rosto humano. 
Deixa de ser o tempo a passar. É o som do nosso corpo no soalho da casa. 
É assim que nos salvamos. 
A espera e a saudade vibram nas paredes da sala como um fenómeno natural e nós apenas somos uma pequena peça desta engrenagem maior.
 Entre nós e o outro apenas existe um eterno fio que nos laça o passado com o desejo. 
É por isso que quando partes nunca te vou ver à janela. 
É na cadeira de baloiço que te aguardo 






João Monge

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

retratos e livros



 

Quem foi que disse que a ausência faz crescer o afecto? 
Guarda a tua raiva, é um recurso precioso. 
Não te livras do turno da noite, dos pensamentos neuróticos da tua cabeça, 
uma espécie de monólogo das aulas de teatro. 
Mas quem sabe o que o passado te reserva para esta insónia? 
Pode ser whisky, ou preferes algo mais frutado? 








Vitor Nogueira

sábado, 6 de agosto de 2022

uma ausência





Em voz alta, ensaiei o teu nome: 
a palavra partiu-se 
Nem eco ínfimo neste quarto
 quase oco de mobília 

 Quase um tempo de vida a dormir
 a teu lado e o desapego é isto: 
um eco ausente, uma ausência de nome
 a repetir-se 

 saber que nunca mais: reduzida
 a um canto desta cama larga, 
o calor sufocante

 Em vez: o meu pé esquerdo
 cruzado em lado esquerdo
 nesta cama 

 O teu nome num chão 
nem de saudades 








 Ana Luísa Amaral

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

agosto


As plantas acenavam ao vento de agosto,
  nas suas hastes finas e verdes.
E disse-me a mais faladora de todas,
  alta e trigueira:
- Dás-me dez anos da tua vida?
Eu só tinha cinco anos,
pus-me a contar pelos dedos,
vi que ia ficar com muito pouco.
- Dou - disse eu.
E ainda hoje, que nunca mais soube de mim,
  vou com o vento, balouçando.
E agosto é todo o ano para mim.




Ruy Belo

quinta-feira, 28 de julho de 2022

um dia destes


 
Um dia destes apeteceu-me ligar para mim
para saber como iam as coisas cá por casa.
Mas não o fiz. Não por temer
que a minha sanidade pudesse ser questionada
e sim para não receber uma resposta evasiva
ou um comentário sarcástico.
Comigo, eu sei com o que posso contar.
 




José Jorge Letria

terça-feira, 26 de julho de 2022

um nome




Está incompleto. Ainda se vê metade do rosto. Sabe- 
mos 
como se acentua junto dos olhos a mesma sombra. Os 
lábios 
fecham-se; à sua volta, um halo apenas: continuam
 afastadas
 as pregas da cor, o rumor trazido pela luz. Há um con- 
torno 
que pode tornar-se nítido. É tudo o que se
 procura. Depois esperamos
 que venha a respiração ao encontro dessa superfície 
até se encontrar
 um nome. É o meu. Se quiserem podem esquecê-lo
 agora. 





 Fernando Guimarães

quinta-feira, 21 de julho de 2022

luz




eu trago a minha canção aberta
 à radiação dos últimos vestígios 
do corpo
 sessenta mil velas 
para unicamente esta noite
 para unicamente esta noite te dizer

 os holofotes acenderam-se 
os holofotes acenderam-se 

 as minhas mão viram as tuas mãos 






 Vasco Gato

terça-feira, 19 de julho de 2022

quarta-feira, 13 de julho de 2022

l'ombre de ton ombre




uma sombra sem peso desliza por uma parede,
 nada a pode parar, como ninguém pode 
impedir um nome ou um canto ou uma ausência
 ou um contorno ou o teu rosto de existir 






 

Per Aage Brandt
 (Foto de Katia Chausheva)

quarta-feira, 6 de julho de 2022

não sabes





Como dizer que este amor não morre ? Mil 
vezes olhei essa porta, por ti desejei 
chegar a terra, perder um grito onde ninguém 
ouvisse. E quando íamos falando de tudo
 só isso proibia calar o amor. Algumas vezes 
não sabes as coisas que mais guardo.









 Hélder Moura Pereira
 (Foto de Cristina Coral)

sexta-feira, 17 de junho de 2022

insensatez



Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
 Vou pertencer você para uma árvore. E pertenceu-me. 
Escuto o perfume dos rios. Sei que a voz das águas tem sotaque azul. 
Sei botar cílio nos silêncios. Para encontrar o azul eu uso pássaros. 
Só não desejo cair em sensatez. Não quero a boa razão das coisas. 
Quero o feitiço das palavras.






Manoel de Barros

sexta-feira, 3 de junho de 2022

tudo passa




Que tudo passa. Os desmandos arbitrários de quem nos paga, o tornozelo torcido na falha da calçada, as derrotas do Benfica, o ranho verde dos putos, o céu cerrado de tristezas e de outras tantas promessas, a subida inesperada das taxas de juro, a pontada súbita de dó pelo sem-abrigo que nos ressona o álcool aos pés, a saudade do que não nos falta, o saldo negativo no banco, o desconsolo molhado da chuva e dos projectos por cumprir. Tudo passa, menos tu: uma espécie de fantasma, uma amálgama de plasma trocista que, em vez de me destapar os lençóis e me puxar os pés ao fundo da cama, me destapa e repuxa os sentidos, picando-me o ponto com aquela assiduidade contrariada de um funcionário por conta de outrém. 






 Sofia Vieira

quinta-feira, 2 de junho de 2022

renegar



Não ser marinheiro. Não ser coisa alguma. E, ainda assim, zarpar deste lugar de fama sem proveito. Aportar às quatro estações, simultâneamente, num único cachimbo (milho de cerejeira). Comer mar, beber sal, respirar resina, cobrir a pele de lâminas de vinho. Renegar renegar. (O tempo). Ressarcir a cinta do silêncio. Derrimir a porca rouquidão. Arrancar às costas a tareia, às pernas o balastro, às mãos as mãos, à voz a recaída. Arrancar o pensamento ao fígado e o fígado ao pensamento. Calar. Sobretudo isso. Calar-me. Escutar o canto sinusoidal, elíptico, dos cactos quando levantam voo para se tornarem homens. Nesses breves segundos, em que os cactos são vermelhos e aveludados, Deus assobia, dizem, velhos ragtimes e eu gosto de ragtimes. Pelo menos tanto quanto gosto de nêsperas, de salivas que não a minha, de bicos-de-lacre, do toque da cortiça. Eu gosto de gostar. E ando esquecido disso. 






Miguel Martins

quinta-feira, 19 de maio de 2022

quarta-feira, 11 de maio de 2022

não sei o que fazer com a minha solidão



 

Punha o coração no trabalho, 
que mais podia fazer,
 não ia deixá-lo em casa 
o dia inteiro sozinho
 a comer porcarias e a ver televisão. 






 Raquel Serejo Martins
 (Giulia Rosa)

segunda-feira, 9 de maio de 2022

teoria do caos



 

Na superficie
da minha pele humana
há restos
de saliva, beijos, carícias, mordidelas
esperma,
chupões,
cortes, feridas, golpes, chagas,
suor, cicatrizes,
esfoladelas, sangue, crostas, pisaduras, lesões,
arranhões,
bofetadas,
varizes, bolhas e queimaduras

Não preciso de perfurações nem de tatuagens,

o meu corpo
é um mapa






Anna Gual

quinta-feira, 28 de abril de 2022

quando chegarei eu?




Aguardo o pôr-do-sol 
 quando os pássaros cantam
 e a terra exala um cheiro quente
 a caruma e tojo. 
 No meio das árvores
 a romãzeira florida parece descansar. 
 Chegou ao fim do seu dia.
 Olho o sol.
 E eu
 quando chegarei eu?






 Ivette Centeno

domingo, 24 de abril de 2022

a paixão



Saímos do amor como dum desastre aéreo 
Tínhamos perdido a roupa os documentos a mim faltava-me um dente e a ti a noção do tempo 
Era um ano longo como um século ou um século curto como um dia? 
Por cima dos móveis pela casa só despojos quebrados: copos retratos livros desfeitos
 Éramos sobreviventes duma derrocada dum vulcão de correntes enfurecidas e despedimo-nos com a vaga sensação de termos sobrevivido mas não sabíamos para quê.






Cristina Peri Rossi

quinta-feira, 14 de abril de 2022

oração



 

Eu queria cantar para dentro de alguém, 
sentar-me junto de alguém e estar aí.
 Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente
 e acompanhar-te ao despertares e ao adormeceres. 
Queria ser o único na casa
 a saber: a noite estava fria. 
E queria escutar dentro e fora
 de ti, do mundo, da floresta. 
Os relógios chamam-se anunciando as horas 
e vê-se o fundo o tempo.
 E em baixo ainda passa um estranho 
e acirra um cão desconhecido. 
Depois regressa o silêncio. Os meus olhos, 
muito abertos, pousaram em ti;
 e prendem-te docemente e libertam-te
 quando algo se move na escuridão. 







 Rainer Maria Rilke

segunda-feira, 11 de abril de 2022

segunda-feira, 4 de abril de 2022

abraço-te




Três fósforos
 um a um acesos na noite

O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos

O terceiro para ver a tua boca

E toda a escuridão para recordar tudo isso

Apertando-te nos braços




Jacques Prévert




sexta-feira, 1 de abril de 2022

mentiras




Diz-me que me amas, diz só uma vez.
 Mesmo que seja mentira, diz-me. 
Só para eu guardar o som da tua voz a dizer essa palavra. 





 


Inês Pedrosa

terça-feira, 29 de março de 2022

cinema



 

Era no cinema, onde as portas
 se abrem e fecham continuamente.
 Àquele rumor ela pensou
 que ele voltasse
 mas não voltou. 







Sandro Penna
(Foto de Cristina Coral)

quinta-feira, 24 de março de 2022

tempestades na boca



chove muito, muito, dir-se-ia que estão a lavar o mundo. o meu vizinho do lado vê a chuva e pensa em escrever uma carta de amor uma carta à mulher com quem vive e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele e se parece com a sua sombra o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher entra em casa pela janela e não pela porta por uma porta entra-se em muitos sítios no trabalho, no quartel, na prisão, em todos os edifícios do mundo mas não no mundo nem numa mulher nem na alma quer dizer nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim como hoje que chove muito e me custa escrever a palavra amor porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa e só a alma sabe onde as duas se encontram e quando e como mas que pode a alma explicar? por isso o meu vizinho tem tempestades na boca palavras que naufragam palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que ele amou e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá como o silêncio que existe entre duas rosas ou como eu que escrevo palavras para regressar ao meu vizinho que vê a chuva e à chuva ao meu coração desterrado






Juan Gelman

segunda-feira, 21 de março de 2022

poesia



 

As palavras despedem-se dos dias
 em que falar é o melhor serviço
 Caem mortas e vivas da linguagem 
vitimada 
Mas quando regressarem
 a sua fúria grande prenderá 
nos humanos céus húmidos a arte
 esquecida e excessiva da poesia. 






 Gastão Cruz

terça-feira, 15 de março de 2022

espaços vazios



 

Tenho arrumado os livros. 
Tiro de uma prateleira sem ordem
 e coloco em outra com ordem. Ficam espaços vazios.
 Hora em hora. 
Não tenho te dito nada. 
Ligo para os outros.
 O que eu poderia dizer é perigoso: certeza (assim como eu disse: daqui dez anos estarei de volta) de que nos reencontramos, cedo ou tarde. 
Mas não sei mais quando
 Cedo ou tarde reencontro – o ponto
 de partida. 







 Ana Cristina Cesar
 (Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 10 de março de 2022

domingo, 6 de março de 2022

de um poema




Não tenho medo de sofás vazios
 ficam na sala da minha lembrança
 como adereços de uma vida acabada 
 Desde que te esqueci revive a esperança 

 Agora tenho outro à porta em certos dias
 Deixo-o entrar levo-o para a minha cama
 e passo-lhe a mão pelos cabelos 
 como tu me fazias 

 Gosto de ti como de um quadro de um poema
 que o tempo torna nossos pessoais 
 Fazes parte de mim e tudo o mais
 já está esquecido. Longe e acabado como tu. 






 Ulla Hahn
 (Foto de Nishe)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

no íntimo de uma gramática morta





 

Falam de restolho, mas obriga-os a atravessar o campo ceifado, rouba-lhes os sapatos, os pés rasgar-se-ão a cada passada, e encher-se-ão de sangue. E de sangue. E de sangue. E o restolho tornar-se-á sinónimo de sangue. E não do amarelo dourado do entardecer. E por fim restolho e sangue serão a mesma coisa. E as moscas que os acompanharam na travessia, zumbindo, zumbindo, zumbindo, serão sangue. E uma ave perdida será sangue. E os gafanhotos serão sangue. E o meio-dia das cigarras será sangue. E o sangue cairá no sangue, alimentar-se-á do sangue. E eles olharão os dedos e gritarão. tenho as mãos sujas de sangue. Essa sujidade invadi-los-á. E as vísceras: sangue. E os ossos: sangue. E os olhos. E a luz. E conhecerão enfim a beleza dourada do restolho. E da tarde e da manhã se fez o interminável: o dia primeiro do sangue. Quando a voz se calou, o sangue estava por todo o lado   




Rui Nunes
(Foto de Katia Chausheva)