quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

no íntimo de uma gramática morta





 

Falam de restolho, mas obriga-os a atravessar o campo ceifado, rouba-lhes os sapatos, os pés rasgar-se-ão a cada passada, e encher-se-ão de sangue. E de sangue. E de sangue. E o restolho tornar-se-á sinónimo de sangue. E não do amarelo dourado do entardecer. E por fim restolho e sangue serão a mesma coisa. E as moscas que os acompanharam na travessia, zumbindo, zumbindo, zumbindo, serão sangue. E uma ave perdida será sangue. E os gafanhotos serão sangue. E o meio-dia das cigarras será sangue. E o sangue cairá no sangue, alimentar-se-á do sangue. E eles olharão os dedos e gritarão. tenho as mãos sujas de sangue. Essa sujidade invadi-los-á. E as vísceras: sangue. E os ossos: sangue. E os olhos. E a luz. E conhecerão enfim a beleza dourada do restolho. E da tarde e da manhã se fez o interminável: o dia primeiro do sangue. Quando a voz se calou, o sangue estava por todo o lado   




Rui Nunes
(Foto de Katia Chausheva)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

magnólia




O desejo pode estar morto
 mas um homem pode ainda ser
 local de encontro entre sol e chuva, 
fantasia esperando a dor por fora 
como uma árvore de inverno 







 D. H. Lawrence

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

o hóspede


Muito antes do anoitecer
 chega a tua casa alguém que saudou a escuridão. 
Muito antes do amanhecer
 ele acorda 
e atiça, antes de se ir embora, um sonho, 
um sono onde ressoam passos:
 tu ouve-lo medir as distâncias
 e atiras a tua alma para lá. 




 Paul Celan
 (Foto de Laura Makabresku)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

o meu amor


o meu amor ensinou-me a chegar
sedento de ternura
sarou as minhas feridas
e pôs-me a salvo para além da loucura








Jorge Palma

domingo, 13 de fevereiro de 2022

dias sem mim



 

A manhã levanta-se devagar,
 os sons crescem lentamente,
a luz nasce já sem sombra
 e alguma coisa morre de repente.
 Que dia é este? Sem ti. 
Um dia só de melancolia, 
um dia de tristeza sem fim. 
Hoje, o mundo ficou incompleto, 
feito de uma lógica sem sentido
 faltas-me tu, falta-me a casa e o tecto,
 falto eu, faltas tu comigo.








José Luís Peixoto

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022