terça-feira, 28 de dezembro de 2021

é preciso gritar?





Olha-se para aquele corpo e não parece
 que esteja preso por arames. 
O corpo fará análises e exames. Valores normais, nada 
de especial, não há razão para alarme. Mas, se 
se olhar bem, ver-se-ão os arames 
que o prendem. 
A quê?
 Prendem-no 
ao amor, porra, ao amor, é preciso gritar? 






 
Helder Moura Pereira
 (Foto de Natalia Drepina)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

ela



A pessoa que me preenchia saiu.
esperem um momento.
ela volta já.






Nuno Moura

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

chavela




É mais que certo: não sinto a tua falta.
 Fiquei a tarde toda a arrumar os teus papéis, 
a reler as cinco cartas que me foste endereçando 
na semana que perdemos: tu no Alentejo,
 eu debaixo de água. Fui depois regar as rosas 
que deixaste no quintal. Sempre só e sem 
carpir o meu estado (porque não me fazes falta), 
pus o disco da Chavela que me deste no Natal 
e comecei a preparar o teu prato preferido. 
Cozinhar fez-me perder o apetite; por isso
 abri uma garrafa de maduro e não me custa
 confessar-te que não sinto a tua falta. 
Por volta das dez horas, obriguei-me a recusar
 dois convites pra sair (aleguei androfobia)
 e estou neste momento a recortar a tua imagem
 (não me fazes falta) nas fotos que possuo de nós dois, 
de maneira a castigar com o cesto dos papéis
 a inábil idiota que deixou que tu te fosses. 






José Miguel Silva

sábado, 18 de dezembro de 2021

a ultima noite


Sinto que se aproxima de mim um destino que não escolhi.
O amor corrói-me a pele, mistura-se ao desejo 
e não me deixa sossegar, nem mesmo quando durmo
mas o amor não é eterno.

Deve ser avassaladora e medonha a última noite de amor








Al Berto

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

estou a soro


Preciso de amor a conta-gotas,
estou a soro,
e já não tenho pele onde espetar tanta agulha.








Miguel Martins

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

já não


 

Já não será
 já não
 não viveremos juntos
 não criarei o teu filho
 não coserei a tua roupa
 não te terei à noite
 não te beijarei ao partir
 nunca saberás quem fui
 porque é que outros me amaram.
 Nunca chegarei a saber 
 porquê nem como 
 nem se era a sério
 o que disseste que era 
 nem quem foste
 nem o que fui para ti 
 nem como teria sido
 vivermos juntos
 amarmo-nos 
 esperarmos um pelo outro
 estarmos. 
 Já não sou mais do que eu 
 para sempre e tu
 já
 não serás para mim 
 mais do que tu. Já não estás
 num dia futuro
 não saberei onde vives 
 com quem
 nem se te lembras. 
Nunca me abraçarás
 como naquela noite
 nunca. 
 Não voltarei a tocar-te. 
 Não te verei morrer.








 Idea Vilariño (trad por Vasco Gato)

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

enganar as horas




Está na cozinha, a sopa ao lume, os pratos na 
 mesa, talheres para dois, como se ele viesse. Hoje. 
 Ele não volta, anda embarcado há muitos anos num 
 navio com sal e ferrugem nos porões. Mas ela espera, 
 sabe que ele pode chegar a qualquer momento. Às 
 vezes espreita a telenovela ou as ervas a crescer junto 
 ao muro do quintal. No resto do tempo, faz e desfaz 
o mesmo naperon, para enganar as horas, o frio, 
 a solidão e um corpo esquecido do que é o amor. 






 José Mário Silva

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

livros de poesia




Para esquecer uma pessoa não há vias rápidas, não há suplentes, 
não há calmantes, ilhas e viagens, livros de poesia, copos ou amigos.
Só há lembrança, dor e lentidão, com intervalos no meio para retomar o fôlego.








Miguel Esteves Cardoso

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021