domingo, 29 de novembro de 2020

que quererá isto dizer?



 

Começar o dia assim: desenhando passos circulares na lama da azinhaga. 
 cães, cheiro a estrume, a solidão paga-se logo de manhã cedo, como uma chuva que nos fustiga
… estou desatento ao que se passa comigo. não consigo avançar uma linha, 
dormito mais do que escrevo. tenho a alma triste.
 Ao certo, que quererá isto dizer?




 Al Berto 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

frio



 

Não voltará - o que dele me ficou
 é como no inverno entre cortinas 
de chuva um tímido fio de sol: 
ilumina mas não aquece as mãos. 






 Eugenio de Andrade

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

eram 3 da tarde



 

Era preciso mais do que silêncio, 
 era preciso pelo menos uma grande gritaria, 
 uma crise de nervos, um incêndio,
 portas a bater, correrias.
 Mas ficaste calada,
apetecia-te chorar mas primeiro tinhas que arranjar o cabelo,
 perguntaste-me as horas, eram 3 da tarde,
 já não me lembro de que dia,
 talvez de um dia em que era eu quem morria, 
 um dia que começara mal, tinha deixado
 as chaves na fechadura do lado de dentro da porta, 
 e agora ali estavas tu, morta (morta como se
 estivesses morta!), olhando-me em silêncio estendida no asfalto, 
 e ninguém perguntava nada e ninguém falava alto!







 Manuel António Pina

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

não sei



 

Como pode
 a mais frágil borboleta
 transportar em si
 montanhas
 cidades rios oceanos 
 a bandeira caída no azeite
 o poente cigano que pede boleia
 a nuvem em tamanho natural
 a metafísica do sangue
 o véu em chamas
 a casa feita de água 
 o vento batendo portas e janelas 
 ao longo deste corredor feito de palavras
 
e como se isso fosse pouco
 eu e a tua ausência






 Artur do Cruzeiro Seixas
 (Foto de Cristina Coral)

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

incêndios



 

Se ao menos o teu coração
 também se pudesse 
circunscrever 






José Carlos Barros
 (Foto de Katia Chausheva)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

nada tenho



 

Quando no meu bolso não tenho nada
 tenho poemas
 quando no frigorífico não tenho nada
 tenho poemas 
quando no coração não tenho nada
 nada tenho 






 Abbas Kiarostami